22 de janeiro de 2007

Podendo, que fazer senão fazê-lo?

Nos idos de 97 ou 98 eu li no Estadão uma matéria sobre uma coletânea de traduções de Fernando Pessoa, algumas então publicadas pela primeira vez. A matéria trazia um poema traduzido, ladeado pelo original em espanhol, que eu logo me contentei em recortar por não ter grana para o livro ou qualquer outra coisa que alimentasse não mais que o espírito.

Anos depois, deu que reencontrei num sebo o livro da resenha - e desta vez eu podia comprá-lo: Fernando Pessoa: poeta-tradutor de poetas, da Nova Fronteira, organizado por Arnaldo Saraiva. Lendo a introdução vim a descobrir que algumas das traduções da coletânea permaneceram desconhecidas até então e só foram encontradas em alguma publicação meio obscura após uma busca de anos financiada pelo organizador.

Me marcou muito aquele poema que eu tinha recortado do jornal, a ponto de até hoje sabê-lo de cor em espanhol e na tradução pessoana. Trata-se do soneto "Cuando me paro a contemplar mi estado", de Garcilaso de la Vega (1503-1536), cujo primeiro verso foi posteriormente glosado por Lope de Vega (1562-1635), o que causa alguma confusão para identificar um e outro.

A tradução do Pessoa é fantástica, com uma solução para o primeiro verso que é uma pequena pérola, mas sempre me intrigou em dois aspectos: (i) o uso de construções arcaicas/castelhanizantes, como em "me ha trazido" e "hei olvidado", e (ii) o pé quebrado do 12o. verso, em oposição aos decassílabos clássicos dos outros versos.

Apesar desse meu estranhamento e intriga, nunca tinha ousado fazer a minha própria tradução do poema - até a semana passada. Podendo, o que eu deveria fazer senão fazê-la? Eis que me entrego com alguma arte e não fico aqui só contemplando o meu estado.

*

O poema original, de Garcilaso de la Vega:

....Cuando me paro a contemplar mi estado
y a ver los pasos por do m'han traído,
hallo, según por do anduve perdido,
que a mayor mal pudiera haber llegado;

....mas cuando del camino estó olvidado,
a tanto mal no sé por do he venido;
sé que me acabo, y más he yo sentido
ver acabar conmigo mi cuidado.

....Yo acabaré, que me entregué sin arte
a quien sabrá perderme y acabarme
si ella quisiere, y aun sabrá querello;

....que pues mi voluntad puede matarme,
la suya, que no es tanto de mi parte,
pudiendo, ¿qué hará sino hacello?


Tradução de Fernando Pessoa:

....Quando a pensar me quedo em meu estado
E a ver os passos por que me ha trazido,
Acho, vendo por onde andei perdido,
Que a maior mal podia ter chegado;

....E quando do caminho hei olvidado,
Mal sei como a este mal fui conduzido;
Sei que morro, e que mais inda hei sentido
Ver acabar comigo o meu cuidado.

....Acabarei, pois me entreguei sem arte
A quem pode perder-me e acabar-me
Se ela quiser, e saberá querê-lo;

....Pois, visto que o meu querer pode matar-me,
O seu, que não é tanto em minha parte,
Podendo, que fará senão fazê-lo?


A minha tradução:

....Quando paro a pensar em meu estado
e a ver os passos por que fui trazido,
acho, vendo por onde andei perdido,
que a maior mal podia haver chegado;

....mas quando esqueço do caminho andado,
nem sei como a este mal fui atraído;
sei que me acabo, e mais terei sentido
ver acabar comigo o meu cuidado.

....Acabarei, pois me entreguei sem arte
a quem irá perder-me e acabar-me
se ela quiser, e saberá querê-lo;

....pois, como o meu querer pode matar-me,
o dela, que nem é de minha parte,
podendo, que fará senão fazê-lo?

2 comentários:

Anônimo disse...

oi!

ah, que legal. e vc traduziu o pessoa para a fnx, lembra?

e não perca: http://gustavoassano.blogspot.com. tem poema pra ti.

beijinhos

Fábio Aristimunho disse...

Puxa, o Gus manda bem, adorei o poema!