8 de março de 2014

A nova fronteira marítima Colômbia-Nicarágua e o impacto da decisão da Corte Internacional de Justiça


Fábio Aristimunho Vargas[1]

Introdução

Colômbia e Nicarágua mantêm há décadas um litígio quanto à posse do arquipélago de San Andrés e Providencia, localizado no Caribe. A questão foi por duas vezes objeto de litígio junto à Corte Internacional de Justiça. Em sentença datada de 2007, a Corte entendeu que as três ilhas principais do arquipélago pertencem à Colômbia, porém não se manifestou quanto a outras ilhotas desabitadas nem quanto à fronteira marítima entre os dois países.
No segundo litígio, cuja sentença data de 2012, a Corte confirmou que as ilhotas pertenciam à Colômbia; por outro lado, a decisão redefiniu as fronteiras marítimas entre os dois países, atribuindo à Nicarágua uma porção significativa de mar que até então os colombianos consideravam como parte de seus domínios marítimos.
O presente artigo se propõe analisar o litígio marítimo e territorial entre os dois países.

1 Origens do conflito

A Colômbia justifica seus direitos históricos sobre o arquipélago de San Andrés e Providencia com base em antigos títulos, como a Real Orden (norma editada pelo rei destinada aos domínios espanhóis de ultramar) datada de 20 de novembro de 1803, que dispunha o seguinte, in verbis:

El Rey ha resuelto que las islas de San Andrés y la parte de la Costa de Mosquitos desde el Cabo de Gracias a Dios, inclusive, hacia el río Chagres, queden segregadas de la Capitanía General de Guatemala y dependientes del Virreinato de Santa Fé, y se ha servido Su Majestad conceder al Gobernador de las expresadas islas, D. Tomás O’Neilie, el sueldo de dos mil pesos fuertes en lugar de los mil quinientos que actualmente disfruta.[2]

Como se vê, esse documento cedera as referidas ilhas, então pertencentes à Capitania Geral da Guatemala, ao Vice-Reino de Santa Fé, também conhecido como Vice-Reino de Nova Granada, jurisdição colonial da Espanha cuja área compreendia os territórios atuais de Colômbia, Venezuela, Panamá e Equador.
Em 24 e maço de 1928, as duas partes firmaram em Manágua, com o objetivo de “pôr término ao litígio territorial entre elas pendente e de estreitar os vínculos de tradicional amizade que as unem”, o Tratado sobre Cuestiones Territoriales entre Colombia y Nicaragua, também conhecido como Tratado Esguerra-Bárcenas em referência aos presidentes signatários, ratificado pela Colômbia no mesmo ano e pela Nicarágua em 1930. Segundo esse acordo a Colômbia passava a reconhecer a Costa dos Mosquitos (extensão do litoral atlântico da América Central Ístmica) e ilhas adjacentes como de domínio nicaraguense, ao passo que a Nicarágua reconhecia a soberania colombiana sobre o arquipélago de San Andrés y Providencia. Assim dispõe o Tratado de 1928, em seu sucinto texto de apenas dois artigos:

Artículo I.
La República de Colombia reconoce la soberanía y pleno dominio de la República de Nicaragua sobre la Costa de Mosquitos compreendida entre el cabo de Gracias a ios y el río San Juan, y sobre las islas Mangle Grande y mangle Chico, en el Océano Atlático (Great Corn Island, y Little Corn Island), y la República de Nicaragua reconoce la soberanía y pleno dominio de la República de Colombia sobre las islas de San Andrés, Providencia, Santa Catalina y todas las demás islas, islotes y cayos que haen parte de dicho Archipiélago de San Andrés.[3]

Na época desse acordo, o Direito Internacional ainda não se havia ocupado do Direito do Mar, resultando que as fronteiras marítimas entre os dois países permaneceriam indefinidas.
Em 4 de fevereiro de 1980, a Junta de Reconstrucción Nacional da Nicarágua expediu uma Declaração por meio da qual declarava nulo e inválido o Tratado de 1928. Alegando violação a sua soberania e que à época da celebração do acordo o país estava militarmente ocupado pelos EUA, a Nicarágua passou a reclamar como próprias as ilhotas (cayos) de Roncador, Quitasueño e Serrana, não incluídos no Tratado de 1928, territórios que nesse momento eram inclusive objeto de litígio entre Colômbia e EUA. Dizia textualmente a referida Declaração:

Todas esas islas, islotes, cayos y bancos [del Archipiélago de San Andrés] son parte integrante e indivisible de la plataforma continental de Nicaragua, territorio submergido que es prolongación natural del territorio principal y por lo mismo incuestionablemente territorio soberano de Nicaragua. [...] Las circunstancias históricas que vivió nuestro pueblo desde el año 1909 impidieron una verdadera defensa de nuestra plataforma continental, aguas jurisdiccionales y territorios insulares que emergen de dicha plataforma continental, ausencia de soberanía que se manifestó [...][4]

Paralelamente, a referida Junta divulgou um memorial, denominado Libro blanco, que reunia a documentação que considerava suficiente para embasar suas reivindicações de soberania sobre certos territórios insulares e a plataforma continental.
No dia seguinte à Declaração nicaraguense, o governo colombiano rechaçou por meio de nota as pretensões daquele país. Paralelamente, preparou um memorial com os principais argumentos e documentos a sustentar suas pretensões territoriais, denominado Libro blanco de la República de Colombia, 1980. Desde a declaração de nulidade por parte de Manágua, os dois países têm enfrentado constantes atritos diplomáticos.

2 O litígio na Corte Internacional de Justiça

Em 6 de dezembro de 2001, a Nicarágua apresentou o caso ante a Corte Internacional de Justiça. Em seus argumentos a Colômbia alegou que a declaração de nulidade do Tratado de 1928 por parte da Nicarágua constituía um ato unilateral contrário ao Direito Internacional.
A sentença da Corte foi proferida em 13 de dezembro de 2007, confirmando que o Tratado de 1928 atribuía à Colômbia a soberania sobre o Arquipélago de San Andrés y Providencia, embora não se manifestasse acerca das ilhotas de Roncador, Serrana e Quitasueño nem resolvesse a questão da fronteira marítima entre ambos os países.
Em uma nova apreciação da matéria, em sentença datada de 19 de novembro de 2012, a Corte de Haia endossou que todas as ilhotas em questão – Roncador, Serrana, Serranilla, Bajo Nuevo, Quitasueño, Albuquerque e Este Sudeste – pertenciam à Colômbia. No entanto, a Corte redefiniu a fronteira marítima e o domínio sobre as águas limítrofes entre os dois países, outorgando à Nicarágua cerca de 40% das águas da região sob litígio, ou 75.000 km2 de mar, que a Colômbia até então considerava como próprias.
Resumem-se, a seguir, as principais decisões adotadas pela Corte Internacional de Justiça na sentença de 2012 sobre a disputa territorial e marítima entre Colômbia e Nicarágua:[5]

(1)     Por unanimidade, a Corte entendeu que a República da Colômbia tem a soberania sobre as ilhas de Alburquerque, Bajo Nuevo, Este Sudeste, Quitasueño, Roncador, Serrana e Serranilla;

(2)     Por quatorze votos a um, entendeu admissível a reivindicação da República da Nicarágua de que a Corte julgasse e declarasse que a forma apropriada de delimitação é um limite da plataforma continental dividindo por partes iguais os direitos que se sobrepõem a uma plataforma continental de ambas as partes;

(3)     Por unanimidade, rejeitou a solicitação da Nicarágua de que a Corte traçasse uma fronteira na plataforma continental dividindo em iguais partes os direitos que se sobrepõem na plataforma continental dos litigantes;

(4)     Por unanimidade, decidiu que a linha da fronteira marítima única a delimitar a plataforma continental e as zonas económicas exclusivas da Nicarágua e Colômbia devem seguir linhas geodésicas que liguem os pontos com as seguintes coordenadas:
   Latitude Norte      Longitude Oeste
1 . 13° 46’ 35,7”      81° 29’ 34,7”
2 . 13° 31’ 08.0”      81° 45’ 59,4”
3 . 13° 03’ 15,8”      81° 46’ 22,7”
4 . 12° 50’ 12,8”      81° 59’ 22,6”
5 . 12° 07’ 28,8”      82° 07’ 27,7”
6 . 12° 00’ 04.5”      81° 57’ 57,8”
          A sentença detalha ainda o modo como esses pontos devem ser conectados.
(5)     Por unanimidade, decidiu que a fronteira marítima única em torno de Quitasueño e Serrana seguirão, respectivamente, um “envoltório” (envelope, no original em inglês) de 12 milhas náuticas de arcos medidos a partir de QS 32 e de baixios a descoberto localizados dentro de 12 milhas náuticas da QS 32, e um “envoltório” de 12 milhas náuticas de arcos medidos a partir de Serrana e as outras ilhotas na sua vizinhança;

(6)     Por unanimidade, rejeitou a reivindicação da Nicarágua de que a Corte declarasse que a República da Colômbia não estaria agindo de acordo com suas obrigações sob o Direito Internacional ao impedi-la de ter acesso aos recursos naturais a leste do meridiano 82.

3 Recepção da sentença da Corte Internacional de Justiça

Convém ressaltar que a Colômbia, ao contrário do que foi por vezes referido na imprensa à época da sentença, com a decisão da CIJ não perdeu seu mar territorial, que permaneceu inalterado, mas tão-somente porções de sua zona econômica exclusiva. O mapa a seguir ilustra a mudança na conformação da fronteira marítima entre Colômbia e Nicarágua:

Imagem: mapa que sintetiza as reivindicações das partes e as alterações na fronteira marítima determinadas pela sentença da Corte de Haia de 2012. Fonte: El Universal[6]

Essa segunda decisão da Corte de Haia não foi bem recebida pela Colômbia. Embora o governo colombiano não negasse a validade da decisão judicial internacional, o então presidente do país, Juan Manuel Santos, declarou-a “inaplicável”. O governo nicaraguense até o momento não teve êxito em seus intentos de iniciar negociações bilaterais quanto à aplicabilidade da sentença.
De igual maneira, por conta da referida sentença desfavorável de 2012, a Colômbia decidiu se desligar do Tratado Americano de Soluções Pacíficas (Pacto de Bogotá), celebrado durante a IX Conferência Panamericana, em 1948, que estabelece mecanismos para a solução pacífica de controvérsias entre Estados do continente americano. De acordo com o Pacto de Bogotá, os Estados partes se comprometem a submeter à Corte Internacional de Justiça as controvérsias surgidas entre si e a acatarem suas resoluções, nos seguintes termos:[7]

Artigo XXXI
De conformidade com o inciso 2º do Artigo 36 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, as Altas Partes Contratantes declaram que reconhecem, com relação a qualquer outro Estado americano, como obrigatória ipso facto, sem necessidade de nenhum convênio especial, desde que esteja em vigor o presente Tratado, a jurisdição da citada Corte em todas as controvérsias de ordem jurídica que surjam entre elas e que versem sobre:
a) A interpretação de um tratado;
b) Qualquer questão de Direito Internacional;
c) A existência de qualquer fato que, se comprovado, constitua violação de uma obrigação internacional;
d) A natureza ou extensão da reparação a ser feita em virtude do desrespeito a uma obrigação internacional.

Logo após a proclamação da sentença da CIJ em 2012, a Colômbia decidiu denunciar o Pacto de Bogotá, no que se pode considerar uma crítica histórica à atuação da Corte. O instrumento com a denúncia foi recebido pela Secretaria Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) na data de 28 de novembro de 2012, tendo um prazo de um ano para surtir efeitos.
Embora essa medida por parte da Colômbia não tenha efeitos retroativos nem afete processos em andamento (“A denúncia não terá efeito algum sobre os processos pendentes e iniciados antes de ser transmitido o aviso respectivo”, nos termos do Pacto de Bogotá, art. LVI), devendo o país de qualquer modo acatar a sentença proferida pela CIJ quanto à fronteira marítima com a Nicarágua, a partir de um ano da denúncia considerar-se-á cessada a jurisdição da CIJ para demandas futuras propostas por outros países contra Bogotá.

Conclusão

Desde uma perspectiva distanciada, não é difícil vislumbrar certos méritos na sentença da Corte de Haia ao reconhecer, com justiça, os direitos da Colômbia sobre as ilhas e atribuir porções marítimas à Nicarágua. Quando se contrasta a área total em litígio, englobando ilhas e mar, com o domínio marítimo da Nicarágua no Atlântico (mar territorial e zona econômica exclusiva), percebe-se que a extensão resulta quase equivalente.
Ou seja, um conjunto de pequenas ilhas com uma área total de 52 km2, habitadas por uma população de cerca de 85.000 habitantes, tem a sua disposição uma porção de mar comparável à que possui, em seu litoral Atlântico, um país com quase 130.000 km2 habitado por 5.5 milhões de habitantes. Mesmo que se considere tão-somente a Costa de Mosquitos nicaraguense, ou seja, a faixa litorânea atlântica do país, ainda assim são 400 km de litoral densamente povoados que defrontam com o arquipélago colombiano. Não seria justo que a porção insular colombiana recebesse o mesmo tratamento que o território continental nicaraguense quanto aos direitos sobre o mar e a plataforma continental, considerando-se os contrastes assinalados.
Essas constatações podem não ter sido consideradas – como não o foram – na tomada de decisão dos juízes de Haia em sua salomônica divisão, em que atribuíram à Colômbia o arquipélago com seu mar territorial e à Nicarágua boa parcela da zona econômica exclusiva circundante, mas constituem reflexões importantes sobre o modo como uma decisão judicial como essa pode impactar objetivamente as populações envolvidas.

Referências bibliográficas

EL UNIVERSAL. No se afectó el mar territorial. 25 de Noviembre de 2012. Disponível em: . Acesso em: 17 fev. 2014.

INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Territorial Dispute and Maritime Delimitation (Nicaragua v. Colombia). Summary of the Judgement of 19 November 2012.

INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Territorial Dispute and Maritime Delimitation (Nicaragua v. Colombia). Summary of the Judgement of 19 November 2012.

REINO DE ESPAÑA. Real Orden de 20 de novembro de 1803. Apud REPÚBLICA DE COLOMBIA. Libro blanco de la república de Colombia, 1980. p. 14.

REPÚBLICA DE COLOMBIA. Libro blanco de la República de Colombia, 1980. Diego Uribe Vargas, Ministro de Relaciones Exteriores. Bogotá: Imprenta Nacional, 1981. Disponível em: . Acesso em: 17 fev.2014.

REZEK, Francisco. Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2009.

TRATADO AMERICANO DE SOLUÇÕES PACÍFICAS (Pacto de Bogotá). Conclusão e assinatura: Bogotá – Colômbia, 30 de abril de 1948. Promulgação no Brasil: Decreto nº 57.785, de 11 de fevereiro de 1966.




[1] Mestre em Direito e doutorando em Integração da América Latina pela USP. Professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila).
[2] REINO DE ESPAÑA, apud REPÚBLICA DE COLOMBIA, 1981, p. 14. Há pequenas diferenças textuais entre o texto ora reproduzido e o encontrado em outras fontes, a começar pelo nome da medida, ora designada como Real Cédula (desígnio direto do soberano, que firmava “Yo, el Rey”), ora como Real Orden (decreto firmado por um ministro expressando a vontade do soberano). Também os valores do soldo do governador divergem entre mil e duzentos pesos fortes “anuais” e mil e quinhentos pesos fortes. Ademais, a fonte ora empregada, o Libro blanco colombiano, data a medida de 30 e novembro de 1803, em vez de 20 de novembro, sendo que esta última nos parece a acertada.
[3] REPÚBLICA DE COLOMBIA, 1981, p. 90.
[4] NICARAGUA, Declaración del 4 de febrero de 1980. Apud REPÚBLICA DE COLOMBIA, Libro blanco..., p. 81. A confissão de “ausência de soberania” por parte da Nicarágua, ao final do fragmento transcrito, seria empregada pelo governo colombiano como prova e confissão da improcedência das reivindicações nicaraguenses.
[5] INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Territorial Dispute and Maritime Delimitation (Nicaragua v. Colombia). Summary of the Judgement of 19 November 2012. p. 11-13.
[6] EL UNIVERSAL. No se afectó el mar territorial. 25 de Noviembre de 2012. Disponível em: . Acesso em: 17 fev. 2014.
[7] Tratado Americano de Soluções Pacíficas (Pacto de Bogotá). Conclusão e assinatura: Bogotá – Colômbia, 30 de abril de 1948. Promulgação no Brasil: Decreto nº 57.785, de 11 de fevereiro de 1966.
[8] INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Territorial Dispute and Maritime Delimitation (Nicaragua v. Colombia). Summary of the Judgement of 19 November 2012. p. 31

1 de março de 2014

A política externa boliviana em face da reivindicação marítima contra o Chile



Fábio Aristimunho Vargas[1]

Introdução

A fronteira entre Bolívia e Chile se caracteriza, desde o fim da Guerra do Pacífico (1879-1883), pela reivindicação boliviana pela reintegração de sua saída marítima, perdida para o Chile no conflito. Esse tem sido um foco permanente de desavença entre os dois países, que dedicam esforços significativos de suas diplomacias para lidar com a questão.
A reivindicação pela saída marítima se converteu, há mais de um século, na base fundamental da política externa boliviana, levando inclusive à ruptura das relações bilaterais por mais de três décadas.
O presente artigo busca analisar as origens do conflito, que remontam à Guerra do Pacífico, sua evolução e a recente inserção na constituição boliviana de um dispositivo acerca da reivindicação marítima.


1 Origens da controvérsia e a Guerra do Pacífico


A reivindicação boliviana sobre o litoral se baseia em títulos que remontam ao período colonial, quando do estabelecimento dos primeiros assentamentos e das audiencias, organismos dedicados a desempenhar funções judiciais, por parte do Império Espanhol em suas terras no Novo Mundo.
Em carta endereçada ao imperador Carlos V de Espanha, datada de 15 de outubro de 1550, o conquistador espanhol don Pedro de Valdivia, reconhecido como o fundador do Chile, já mencionava o paralelo 25 como o limite norte de sua jurisdição.
A Real Audiencia de Charcas, com sede na cidade de Chiquisaca, atual Sucre, foi a mais alta autoridade jurídica de todo o território que compreende o Alto Peru, Tucumán, Rio da Prata e Paraguai. Foi criada pela Real Cédula de 18 de setembro de 1559, pelo rei Felipe II da Espanha, e seus limites foram fixados pela Real Cédula de 29 de agosto de 1563.
A Recopilación de Leyes de las Indias, de 1680, compilação de toda legislação promulgada pelos monarcas espanhóis para regular suas nas Américas e nas Filipinas (as Índias), reproduz a cédula de 1563 em seu Libro II (De las Leyes, Provisiones, Cedvlas, y Ordenanças Reales), Título XV (De las Audiencias, y Chancillerias Reales de las Indias), Ley IX (Audiencia y Cancilleria Real de la Plata, Provincia de los Charcas).

Imagem: fac-simile da norma colonial que estabeleceu a circunscrição geográfica da Real Audiencia de Charcas, cerne da atual Bolívia.[2]

O presidente Real Audiencia de Charcas acumulava o cargo de Capitán General de La Plata, gozando, portanto, de faculdades administrativas além das judiciais. Durante os dois primeiros séculos de colonização, quando pertencia ao Vice-Reino do Peru, Charcas foi um dos centros mais prósperos e densamente povoados dentre as colônias espanholas no Novo Mundo e Potosí, a cidade mais importante do Império Espanhol no hemisfério ocidental. Com o esgotamento das minas de prata, a região entrou em declínio a partir das últimas décadas do séc. XVIII. Em 1776, a Real Audiencia de Charcas passou a integrar o Vice-Reino do Prata, sediado em Buenos Aires.
Quanto a sua abrangência territorial,

se estableció en los distintos mapas de la época que Charcas abarcaba desde el Río Loa en el norte a los 21º y el Río Salado en el Sur entre los grados 26° y 27°. Fundamentado en el uti possidetis juris de 1810, la República de Bolivia nace a la vida independiente sobre el territorio correspondiente a la antigua jurisdicción de Charcas. Los primeros años de la República, Atacama era una provincia dependiente de la prefectura de Potosí y en 1837 se creó el Departamento del Litoral, el cual se dividía en dos provincias, La Mar y Atacama.[3]

Em seu complexo processo de independência, a Bolívia se constituiu sobre as bases territoriais da antiga Audiencia de Chacras.
Em 1833, Chile e Bolívia firmam seu primeiro Tratado de Amistad, Comercio y Navegación. Algumas fontes apontam esse tratado como aquele em que pela primeira vez se reconheceu o paralelo 25 como o limite entre os dois países,[4] porém, em nossa leitura do acordo, nada encontramos em seu texto original, nem no Artigo adicional criado no ano seguinte, que pudesse corroborar esse entendimento.
A partir da década de 1840, a crescente importância econômica do salitre levou a que muitos chilenos, sem autorização do governo boliviano, se estabelecessem no deserto do Atacama, região rica em depósitos de nitrato e guano, com o objetivo de explorar esses recursos. A ocupação chilena da região levou à revisão das fronteiras entre os dois países, com a assinatura do primeiro Tratado de Límites entre la Republica de Chile y la de Bolivia, em 1866, cujo preâmbulo estabelecia o seguinte:

La República de Chile y la República de Bolivia, deseosas de poner un termino amigable y recíproca­mente satisfactorio a la antigua cuestión pendiente entre ellas sobre la fijación de sus respectivos limites territoriales en el desierto de Atacama y sobre la ex­plotación de los depósitos de guano existentes en el literal del mismo desierto, y decididas a consolidar por este medio la buena inteligencia, la fraternal amistad y los vínculos de alianza intima que las ligan mutuamente, han determinado renunciar a una parte de los derechos territoriales que cada una de ellas, fundada en buenos títulos, cree poseer, y han acorda­do celebrar un tratado que zanje definitiva e irrevo­cablemente la mencionada cuestión.

Vê-se que já naquela época os dois países se empenhavam em resolver a questão territorial do Atacama, recorrendo a meios pacifistas e no espírito de boa vizinhança, pelo menos no discurso. A necessidade de resolver a pendência fronteiriça e o discurso pacifista até hoje permanecem, embora o território tenha mudado de mãos em uma guerra e as circunstâncias sejam outras.
Assim dispunha o Tratado de 1866 quanto aos limites territoriais:

Artículo 1º. La línea de demarcación de los límites entre Chile y Bolivia en el desierto de Atacama, será en adelante el paralelo 21 de latitud meridional desde el litoral del Pacífico hasta los límites orientales de Chile, de suer­te que Chile por el sur y Bolivia por el norte tendrán la posesión y dominio de los territorios que se extien­den hasta el mencionado paralelo 24, pudiendo ejer­cer en ellos todos los actos de jurisdicción y soberanía correspondientes al señor del suelo.

O paralelo 24 de latitude sul passava a ser linha divisória entre Bolívia e Chile. Logo se vê que a fronteira entre os dois países vinha recuando em detrimento da Bolívia, havendo passado de algo entre os paralelos 26 e 27, da jurisdição de Charcas no período colonial, ao paralelo 24 com o Tratado de 1866, ao mesmo tempo em que a presença de cidadãos chilenos ia se tornando massiva no litoral e no Atacama bolivianos.
O dispositivo seguinte do tratado ia além, criando uma espécie de “mancomunidade” para a exploração dos depósitos de guano. Mancomunidade é um instituto originário do Direito Espanhol que estabelece uma forma associativa de organização de certos entes da administração pública, sejam municípios ou províncias, para a consecução de um objetivo comum, delegando-se parcelas de competências a uma entidade. Textualmente:

Artículo 2º. No obstante la división territorial estipulada en el artículo anterior, la República de Chile y la Repúbli­ca de Bolivia se repartirán por mitad los productos provenientes de la explotación de los depósitos de guano descubiertos en Mejillones y de los demás de­pósitos del mismo abono que se descubrieren en el territorio comprendido entre los grados 23 y 25 de latitud meridional, como también los derechos de exportación que se perciban sobre los minerales extraí­dos del mismo espacio de territorio que acaba de designarse.

Assim, pelo Tratado de 1866, seriam repartidos por igual os recursos da exploração dos depósitos de guano e demais recursos localizados entre os paralelos 23 e 25, ou seja, em parcelas iguais do território da Bolívia e do Chile, lembrando-se que a fronteira era no mesmo ato estabelecida no paralelo 24.
Em 6 de fevereiro de 1873, Bolívia e Peru firmaram, em Lima, o Tratado de Alianza Defensiva, também conhecido como Pacto Secreto Perú-Bolivia e Tratado Riva Agüero-Benavente, um acordo sigiloso entre os dois países com vistas a garantir a soberania mútua e a se defender contra toda agressão exterior, nos seguintes termos:

Artículo I.
Las altas partes contratantes se unen y ligan para garantizar mutuamente su independencia, su soberanía y la integridad de sus territorios respectivos, obligándose en los términos del presente Tratado a defenderse contra toda agresión exterior, bien sea de otro u otros Estados independientes o de fuerza sin bandera que no obedezcan a ningún poder reconocido.
Artículo II.
La Alianza será efectiva para conservar los derechos expresados en el artículo anterior, y en los casos de ofensa, que consistan:
1.° En actos dirigidos a privar a alguna de las Altas Partes contratantes de una porción de su territorio, con ánimo de apropiarse su dominio o de cederlo a otra potencia.
2.° En actos dirigidos a someter a cualquiera de las Altas Partes contratantes a protectorado, venta o cesión de territorio, o a establecer sobre ella cualquiera superioridad, derecho o preeminencia que menoscabe u ofenda el ejercicio amplio y completo de su soberanía e independencia.
3.° En actos dirigidos a anular o variar la forma de Gobierno, la Constitución política o las leyes que las Altas Partes contratantes se han dado o se dieren en ejercicio de su soberanía.
Artículo III.
Reconociendo ambas partes contratantes que todo acto legítimo de Alianza se basa en la justicia, se establece para cada una de ellas, respectivamente, el derecho de decidir si la ofensa recibida por la otra, está comprendida entre las designadas en el artículo anterior.
[...]
Artículo VIII.
Las altas partes contratantes se obligan también:
1.° A emplear con preferencia, siempre que sea posible, todos los medios conciliatorios para evitar un rompimiento o para terminar la guerra, aunque el rompimiento haya tenido lugar, reputando entre ellos, como el más efectivo, el arbitraje de una tercera potencia.
[...]
Artículo adicional.
El presente Tratado de Alianza defensiva entre Bolivia y el Perú, se conservará secreto mientras las dos Altas Partes contratantes, de común acuerdo, no estimen necesaria su publicación.[5]

Como se pode ver pelo disposto nos artigos I e II, Bolívia e Peru estabeleceram com o Pacto Secreto uma aliança de caráter exclusivamente defensivo, buscando proteger-se contra toda agressão externa e garantir sua mútua independência, sua soberania e a integridade de seus territórios. As intenções defensivas foram enfatizadas pelo art. VIII, segundo o qual as parte se obrigariam a empregar todos os meios conciliatórios para evitar um rompimento ou para terminar a guerra, ainda que o rompimento tenha tido lugar, podendo-se inclusive recorrer à arbitragem de uma terceira potência. O tratado secreto, no entanto, viria a ser usado pelo Chile como pretexto para, mais tarde, declarar guerra ao Peru, com base no suposto caráter ofensivo e intensões expansionistas do país expressas no tratado.
Em 6 de agosto de 1874 foi firmado um segundo Tratado de Límites entre Bolívia e Chile, que, em linhas gerais, manteve a fronteira no paralelo 24 e a mancomunidade sobre a exploração dos recursos minerais, dispondo-se que as indústrias chilenas não seriam gravadas com impostos durante vinte e cinco anos. O Tratado de 1866 quedou expressamente revogado.
O preâmbulo desse acordo reiterou o tradicional discurso diplomático referente à manutenção da paz e das boas relações:

Las repúblicas de Chile y de Bolivia, estando igualmente animadas del deseo de consolidar sus mutuas y buenas relaciones y de apartar por medio de pactos solemnes y amistosos todas las causas que puedan tender a enfriarlas o entorpecerlas, han determinado celebrar un nuevo tratado de límites que, modificando el celebrado en año de 1866, asegure en lo sucesivo a los ciudadanos y a los gobiernos de ambas repúblicas, la paz y la buena armonía necesarias para su libertad y progreso.

Na sequência, o mesmo Tratado de 1874 endossou a linha de fronteira estabelecida pelo Tratado de 1866:

Artículo 1º. El paralelo del grado 24 desde el mar hasta la Cordillera de los Andes en el divortia aquarum es el límite entre las repúblicas de Chile y de Bolivia.

Divortium aquarum é o divisor de águas ou linha de separação das águas, uma linha imaginária separadora das águas pluviais, que escoam em direções diferentes, dividindo um território em bacias hidrográficas. A fronteira entre Chile e Bolívia correria, segundo o art. 1º do Tratado de 1874, pelo paralelo 24 de latitude sul desde o mar até o divisor de águas nos Andes.
No artigo seguinte foi ratificada a demarcação prévia dos paralelos 23 e 24, ou seja, a porção do território boliviano em “mancomunidade” com o Chile, assim como os seus efeitos jurídicos, estabelecendo-se um modo de solução técnica de dúvidas quanto à eventual localização de uma mina que recorreria, curiosamente, para a indicação de um perito por parte do imperador do Brasil:

Artículo 2º. Para los efectos de este tratado se consideran firmes y subsistentes las líneas de los paralelos 23 y 24, fijados por los comisionados Pissis y Mujía y de que da testimonio el acta levantada en Antofagasta el 10 de febrero de 1870.
Si hubiere duda acerca de la verdadera y exacta ubicación del asiento minero de Caracoles o de cualquier otro lugar productor de minerales, por considerarlos fuera de la zona comprendida entre esos paralelos, se procederá a determinar dicha ubicación por una comisión de dos peritos nombrados uno por cada una de las Partes Contratantes, debiendo los mismos peritos nombrar un tercero en caso de discordia; y si no se aviniesen para ese nombramiento, lo efectuará S. M. el Emperador del Brasil. Hasta que no aparezca prueba en contrario relativa a esta determinación, se seguirá entendiendo, como hasta aquí, que ese asiento minero esta comprendido entre los paralelos indicados.

Na sequência, o Tratado de 1874 manteve a sociedade existente entre os dois países na exploração dos referidos recursos, tal como até então configurada:

Artículo 3º. Los depósitos de guano existentes o que en adelante se descubran en el perímetro de que habla el artículo anterior, serán partibles por mitad entre Chile y Bolivia; el sistema de explotación, administración y venta se efectuará de común acuerdo entre los gobiernos de las dos repúblicas en la forma y modo que se ha efectuado hasta el presente.

Por fim, o artigo 4º do Tratado estabeleceu, pelo prazo de vinte e cinco anos, isenção tributária em benefício dos produtores chilenos em território boliviano para além dos impostos e contribuições até então vigentes.

Artículo 4º. Los derechos de exportación que se impongan sobre los minerales explotados en la zona de terreno de que hablan los artículos procedentes, no excederán la cuota de la que actualmente se cobra, y las personas, industrias y capitales chilenos no quedarán sujetos a más contribuciones de cualquiera clase que sean que las que al presente existen.
La estipulación contenida en este artículo durará por el término de veinticinco años.

Como não havia reciprocidade nessa cláusula, ou seja, não se asseguravam os mesmos direitos a eventuais produtores bolivianos em território chileno, é de se questionar se não restaria sobremaneira afetado o equilíbrio entre as altas partes contratantes devido à onerosidade excessiva a uma delas, o que poderia implicar a nulidade do tratado.
Os demais dispositivos do Tratado de 1874 dispunham sobre a liberdade de importação recíproca na zona mancomunada, a habilitação de certos portos da região e a derrogação do Tratado de 1866.
Em 25 de outubro de 1875 foi firmado um Protocolo ou Tratado Complementario, acessório em relação ao Tratado de 1874, em que se endossava a exploração conjunta dos recursos do território compreendido entre os paralelos 23 e 25 de latitude sul, assim como se estabelecia o recurso à arbitragem para resolver quaisquer questões referentes à interpretação e execução do Tratado de 1874. Textualmente:

Artículo 1º. Se declara que el sentido que debe darse a la comunidad en la explotación de guanos descubiertos y por descubrirse, de que habla el artículo 3º del tratado del seis de agosto de mil ochocientos setenta y cuatro, se refiere al territorio comprendido entre los paralelos 23 y 25 de latitud sur.
Artículo 2º. Todas las cuestiones a que diere lugar la inteligencia y ejecución del tratado del seis de agosto de mil ochocientos setenta y cuatro, deberán someterse al arbitraje.

Nesse mesmo ano, a Bolívia impôs o pagamento “de 10 centavos de boliviano por cada quintal de salitre explotado a empresas chileno-británicas que tenían concesiones en territorio boliviano”,[6] desconsiderando a isenção prevista no art. 4º do Tratado de 1874, que o Chile considerou violado.
Após essa violação, a Bolívia propôs que a questão fosse resolvida por arbitragem, nos termos do Tratado Complementario de 1875.
O Chile, no entanto, ocupou os portos de Antofagasta, Cobija, Mejillones, Calama, Atacama e as jazidas mineiras de Caracoles. Bolívia e Peru puseram em prática sua aliança secreta, em 1879, com o objetivo de defender o território boliviano da invasão chilena. O Chile então declarou guerra à Bolívia e ao Peru em 5 de abril de 1879.
Enquanto se desenrolava o conflito tripartite, a Argentina foi convidada a integrar a aliança entre Peru e Bolívia contra o Chile. O parlamento argentino chegou a aprovar o Pacto de Alianza Defensiva, mas este acabou não cumprindo todos os trâmites. De qualquer maneira, o governo argentino aproveitou a situação para ocupar, em 1881, a porção da Patagônia então controlada pelo Chile e, ameaçando abrir uma nova frente de conflito, obrigou esse país a firmar o Tratado de Límites de 1881 que reconhecia as reivindicações de Buenos Aires.
Como saldo da Guerra do Pacífico, que durou de 1879 a 1883, a Bolívia perdeu seu acesso soberano ao mar e diversos portos, num total de 120.000 km2 de território que foram incorporados pelo Chile. De igual maneira, as províncias peruanas de Arica e Tacna passaram a ser controladas pelo Chile.
Em 1884, Bolívia e Chile firmaram o Pacto de Tregua, por meio do qual se encerra o conflito entre as partes e o Chile legitima sua ocupação dos territórios bolivianos.
Em 1888, o governo chileno declara a anexação do Departamento del Litoral, boliviano, à sua jurisdição com o nome de provincia de Antofagasta.
Em 1895 foram firmados novos acordos entre os dois países. O Tratado Especial de 1895, que redefiniu as fronteiras decorrentes da Guerra do Pacífico levando em conta uma saída soberana para a Bolívia no Oceano Pacífico, acabou não sendo aprovado pelo parlamento chileno. Também foram firmados um Tratado de Comercio e um Protocolo, este com o objetivo de definir o alcance e a obrigatoriedade do Tratado Especial de 1895.
O Tratado de Paz y Amistad de 1904, firmado em 20 de outubro desse ano, cedia ao Chile o litoral boliviano em caráter perpétuo em troca de uma indenização de 300.000 libras esterlinas, um regime de livre trânsito, benefícios alfandegários e a construção, a expensas do Chile, de uma estrada de ferro de Arica a La Paz.
Sobre esses assuntos, dispõe o Tratado de Paz y Amistad de 1904 nos seguintes termos:

Artículo 2º. Por el presente Tratado, quedan reconocidos del dominio absoluto y perpetuo de Chile los territorios ocupados por éste en virtud del artículo 2º del Pacto de Tregua de 4 de Abril de 1884. El límite de Sur a Norte entre Chile y Bolivia será el que se expresa a continuación: [...]
Artículo 3º. Con el fin de estrechar las relaciones políticas y comerciales de ambas Repúblicas, las Altas Partes Contratantes convienen en unir el puerto de Arica con el Alto de La Paz por un ferrocarril cuya construcción contratará a su costa el Gobierno de Chile, dentro del plazo de un año, contado desde la ratificación del presente Tratado. La propiedad de la sección boliviana de este ferrocarril se traspasará a Bolivia a la expiración del plazo de quince años, contado desde el día en que esté totalmente terminado.
Con igual fin, Chile contrae el compromiso de pagar las obligaciones en que pudiera incurrir Bolivia por garantías hasta por cinco por ciento sobre los capitales que se inviertan en los siguientes ferrocarriles, cuya construcción podrá emprenderse dentro del plazo de treinta años: Uyuni a Potosí; Oruro a La Paz; Oruro, por Cochabamba, a Santa Cruz; de La Paz a la región del Beni; y de Potosí, por Sucre y Lagunillas, a Santa Cruz.
Este compromiso no podrá importar para Chile un desembolso mayor de cien mil libras esterlinas anuales, ni exceder de la cantidad de un millón setecientas mil libras esterlinas que se fija como el máximum de lo que Chile destinará a la construcción de la sección boliviana del ferrocarril de Arica al Alto de La Paz y a las garantías expresadas; y quedará nulo y sin ningún valor al vencimiento de los treinta años antes indicados.
La construcción de la sección boliviana del ferrocarril de Arica al Alto de La Paz, como la de los demás ferrocarriles que se construyan con la garantía del Gobierno Chileno, será materia de acuerdos especiales de ambos Gobiernos y en ellos se consultarán las facilidades que se darán al intercambio comercial de los dos países.
El valor de la referida sección se determinará por el monto de la propuesta que se acepte en el respectivo contrato de construcción.
Artículo 4º. El Gobierno de Chile se obliga a entregar al Gobierno de Bolivia la cantidad de trescientas mil libras esterlinas en dinero efectivo y en dos parcialidades de ciento cincuenta mil libras; debiendo entregarse la primera parcialidad seis meses después de canjeadas las ratificaciones de este Tratado; y la segunda, un año después de la primera entrega.
[...]
Artículo 6º. La República de Chile reconoce en favor de la de Bolivia y a perpetuidad, el más amplio y libre derecho de tránsito comercial por su territorio y puertos del Pacífico. Ambos Gobiernos acordarán, en actos especiales, la reglamentación conveniente para asegurar, sin perjuicios para sus respectivos intereses fiscales, el propósito arriba expresado.
Artículo 7º. La República de Bolivia tendrá el derecho de constituir agencias aduaneras en los puertos que designe para hacer su comercio. Por ahora señala por tales puertos habilitados para su comercio, los de Antofagasta y Arica. [...][7]

 Em 1929, Chile e Peru firmaram um acordo segundo o qual o primeiro ficaria com Arica e o segundo, com Tacna, pondo fim à animosidade entre ambos. Em complemento a esse acordo, firmaram ainda um protocolo no qual se estabelecia que nenhum dos dois poderia, sem acordo entre as partes, ceder a totalidade desses territórios a um terceiro Estado. Ou seja, a solução do enclausuramento da Bolívia se torna um assunto trilateral a partir de 1929.
Desde o fim da Guerra do Pacífico, inúmeros compromissos foram assumidos pelos dois países com vistas a solucionar bilateralmente o conflito territorial pela saída marítima boliviana, mas até o momento nada de concreto se observou.
Embora o Congresso Boliviano tenha aprovado o Tratado de Paz y Amistad de 1904 em 4 de fevereiro de 1905 e o Poder Executivo boliviano o tenha ratificado em 10 de março de 1905, mesmo dia em que foram trocadas as notas de ratificação em La Paz, hoje a Bolívia nega reconhecimento a esse tratado, reivindicando sua saída oceânica e a reintegração de seus antigos território perdidos na guerra.
O Chile argumenta, de sua parte, que o Tratado de Paz y Amistad de 1904 foi firmado vinte longos anos após o fim da Guerra do Pacífico, em um contexto histórico em que nenhuma das partes se encontrava pressionada pelas circunstâncias. A Bolívia teria assumido, à época, espontaneamente, um compromisso internacional livre de quaisquer vícios de consentimento, tendo recebido em troca uma série de benefícios alfandegários e de trânsito. Além disso, o Chile se comprometeu com a construção de uma ferrovia ligando La Paz ao porto de Arica, que foi afinal levada a cabo sem ônus para o governo boliviano. Do ponto de vista chileno, a Bolívia deveria renunciar previamente a tais privilégios e ressarci-los todos, à base de um século de fruição, para pretender sequer iniciar uma nova conversação acerca da saída oceânica.
Ademais, o Pacto Secreto de Alianza entre Bolívia e Peru teria, sob a ótica chilena, materializado uma conspiração cautelosamente planejada contra o Chile, como se evidenciou com a Guerra do Pacífico. A suposta má-fé por parte da Bolívia poderia ser depreendida do fato de o país ter firmado dois tratados com o Chile durante a vigência da aliança secreta com o Peru, tendo-os desrespeitado a ambos deliberadamente.
O Chile argumenta ainda que a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, de 1969, determina a inviolabilidade dos acordos e a perpetuidade e imodificabilidade dos tratados de limites (art. 62).
Em 2006, após mais de três décadas de rompimento das relaçoes diplomáticas, os governos de Bolívia e Chile, presididos por Evo Morales e Michelle Bachelet, respectivamente, deram início a uma relativa aproximação. O tradicional discurso chileno de que a questão territorial com a Bolívia se teria encerrado com o Tratado de Paz y Amistad de 1904 parece ter cedido lugar, nos últimos anos, a uma postura mais conciliadora e aberta ao diálogo.
Em 24 de abril de 2013, a Bolívia apresentou à Corte de Haia demanda contra o Chile, em que exige a devolução de sua saída soberana para o mar.

2. A reivindicação marítima na Constituição Boliviana de 2009


Em 2009, com a promulgação da nova constituição da Bolívia, aprovada em referendo pelo povo, foi inserida uma disposição inédita acerca da reivindicação do país por uma saída ao mar:

CAPÍTULO CUARTO
REIVINDICACIÓN MARÍTIMA
Artículo 267.
I. El Estado boliviano declara su derecho irrenunciable e imprescriptible sobre el territorio que le dé acceso al océano Pacífico y su espacio marítimo.
II. La solución efectiva al diferendo marítimo a través de medios pacíficos y el ejercicio pleno de la soberanía sobre dicho territorio constituyen objetivos permanentes e irrenunciables del Estado boliviano.[8]

A despeito do título empregado no capítulo da Constituição, o Estado Boliviano pleiteia, na verdade, uma “reintegração” territorial, e não uma mera “reivindicação” marítima, como se pode depreender da leitura do párrafo I. Os termos não são sinônimos: reivindicação, do latim rei vindicatio, tem o sentido jurídico de se exigir aquilo que se tem por direito ou se acredita ter, consituindo um meio judicial de proteção do direito de propriedade,[9] enquanto reintegração significa o ato de restituir a posse de um bem. A Bolívia, como se pode vislumbrar de sua política externa e do mandamento constitucional, não pleiteia direitos sobre seu antigo território, senão a restituição de sua posse, sua reintegração.
Com o art. 267 de sua Constituição, a Bolívia declara irrenunciável e imprescritível o seu direito sobre o território que lhe dê acesso ao Oceano Pacífico. Declarar irrenunciável um direito significa afirmar que a ele não se pode renunciar sob qualquer circunstância; se por ventura um futuro governo boliviano, sob a vigência da atual constituição, vier a renunciar a esse direito, tal ato padecerá de inconstitucionalidade e não será admitido como válido. Um direito imprescritível é aquele que não prescreve com o tempo, que não se perde, que se pode recuperar a qualquer instante, ainda quando seu abandono tenha se prolongado no tempo.
O artigo 267 constitui uma novidade na história constitucional do país, não existindo antecedentes da temática marítima no constitucionalismo boliviano. Nesse sentido, pode-se afirmar que o referido dispositivo da Constituição boliviana:

se presenta como una innovación dentro del constitucionalismo boliviano, ya que por primera vez se introduce en el sistema constitucional, el derecho de Bolivia sobre el territorio que le dé acceso al Océano Pacífico y su espacio marítimo. El artículo establece que es un objetivo permanente e irrenunciable, que en dicho territorio,  Bolivia pueda ejercer soberanía plena. Esta constitucionalización de uno de los objetivos principales de la política exterior boliviana, arrastra una problemática originada en la Guerra del Pacífico, hito a partir del cual Bolivia pierde la cualidad marítima. Respecto al diferendo marítimo, el artículo señala que la solución debe darse a través de medios pacíficos.[10]

Conforme visto, o art. 267 estabelece expressamente o recurso a meio pacíficos para solucionar o litígio territorial com o vizinho, em consonância com outro dispositivo constitucional, o art. 10, que estabelece que a Bolívia é um Estado pacifista, que promove a cultura da paz e o direito à paz, rechaçando toda guerra de agressão como instrumento de solução de controvérsias e conflitos entre Estados. No original:

Artículo 10
I. Bolivia es un Estado pacifista, que promueve la cultura de la paz y el derecho a la paz, así como la cooperación entre los pueblos de la región y del mundo, a fin de contribuir al conocimiento mutuo, al desarrollo equitativo y a la promoción de la interculturalidad, con pleno respeto a la soberanía de los estados.
II. Bolivia rechaza toda guerra de agresión como instrumento de solución a los diferendos y conflictos entre estados y se reserva el derecho a la legítima defensa en caso de agresión que comprometa la independencia y la integridad del Estado.
III. Se prohíbe la instalación de bases militares extranjeras en territorio boliviano.

No Direito Internacional e no âmbito das relações internacionais, os meios pacíficos são identificados como diplomáticos, políticos ou jurisdicionais. Dentre os diplomáticos, existem as seguintes formas à disposição da Bolívia para solucionar seu diferendo com o Chile: negociação direta, bons ofícios, mediação e conciliação. Os meios políticos seriam destinados a resolver problemas mais de natureza política no âmbito de organizações internciaonais, o que não nos parece o caso da controvérsia boliviano-chilena. Como meios jurisdicionais, pode-se recorrer a um tribunal internacional, como a Corte Internacional de Justiça, ou a uma solução arbitral, desde que acordada por ambas as partes. O governo de Evo Morales, na Bolívia, já sinalizou em mais de uma oportunidade com a pretensão de submeter a questão à Corte de Haia.
Entretanto, quer-nos parecer contraditória ou, no mínimo, problemática a eventual opção da Bolívia de resolver a pendência territorial com o Chile por meio de uma ação judicial junto à Corte de Haia. Isso porque o art. 267 da Constituição boliviana determina como “irrenunciável e imprescritível” o seu direito sobre o território em litígio, enquanto que, por outro lado, aceitar a jurisdição da Corte de Haia sobre a questão significa aceitar a eventualidade de uma decisão desfavorável. Há nisso uma contradição.
O governo boliviano estaria, assim, constitucionalmente obrigado a rechaçar qualquer decisão judicial que implique a renúncia ao direito sobre o referido território, haja vista que a Constituição o determina irrenunciável e imprescritível. Por outro lado, a Corte sequer poderia se manifestar sobre direitos indisponíveis, como é o caso do autodeclarado direito boliviano. Restam ao governo boliviano, assim, os outros meios que solução pacífica de controvérsias que não os jurisdicionais.
Como conciliar a irrenunciabilidade e imprescritibilidade do referido direito, como determinado pelo párrafo I do art. 267, com o imperativo de se recorrer a meios pacíficos para a solução efetiva da controvérsia, conforme estabelecido no párrafo II? É como se só se pudesse recorrer a uma solução por um dos meios pacíficos se o resultado não implicar a renúncia ao território. Como se se aceitasse o meio com a condição de que o fim lhe seja favorável.
À luz do dispositivo, o governo boliviano está de mãos atadas, visto que não pode aceitar qualquer resolução que implique a renúncia ao território, tais como: indenização, compensações territoriais em outro ponto da fronteira, privilégios de livre-criculação, servidão de passagem (instituto do Direito Civil, de origens romanas, que implica a limitação ao direito do “proprietário” decorrente na necessidade de trânsito por parte de um vizinho), “soberania compartilhada” (na linha da proposta de compartilhamento de Gibraltar entre Espanha e Reino Unido, derrotada em referendo pelos gibraltinos em 2002).

3 Considerações finais

A disposição do art. 267 da Constituição Boliviana, por vezes referido como “constitucionalização de um dos objetivos principais da política externa boliviana”, não poderia, à luz de outra perspectiva, ser denominado “constitucionalização do rancor histórico”? Ao se transformar o pleito em norma programática da constituição, ou seja, numa diretriz vinculante para a atuação futura dos órgãos e instituições do Estado, criou-se uma orientação objetiva para os governantes e demais autoridades públicas, de certo modo engessando seus movimentos e restringindo o seu campo de atuação. As relações bilaterais com o Chile restarão sempre condicionadas, como desde 1883 têm estado marcadas por essa questão pendente, agora alçada a nível constitucional. A questão transcende o mundo fático para ascender ao nível normativo, do campo do ser contamina o dever-ser.
A política externa do Chile, de sua parte, tradicionalmente descarta qualquer possibilidade de outorgar à Bolívia soberania sobre alguns dos territórios que esta perdera no passado, com a justificativa de que, com isso, seria interrompida a continuidade territorial do país e seria dividida a sua soberania. Com efeito, não há como negar certa razão ao argumento chileno, haja vista que a norte do antigo litoral boliviano o país conquistou e consolidou territórios, originalmente peruanos, na mesma Guerra do Pacífico, que ficariam eventualmente isolados do resto do país, ao sul, pela via terrestre, em caso de devolução de territórios à Bolívia. O temor da descontinuidade territorial por parte do Chile não deve ser subestimado; por outro lado, é certamente do interesse do país resolver definitivamente essa desavença histórica com o vizinho.
Outra incerteza advinda do art. 267 é se o Estado Boliviano persegue a reivindicação dos territórios que lhe foram injustamente usurpados na guerra ou se busca um território que lhe dê acesso soberano ao Oceano Pacífico. A resposta a esse questionamento não será de somenor importância para a implementação do meio pacífico eventualmente escolhido para a solução do diferendo. O Chile poderia, por exemplo, em hipótese, oferecer uma saída ao mar mais ao norte da região originalmente boliviana, junto à fronteira com o Peru, área que nunca pertenceu à Bolívia, numa solução que não quebraria a continuidade territorial chilena nem ofenderia a certas veleidades das partes em litígio.


Referências bibliográficas

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REINO DE ESPAÑA. Recopilación de Leyes de los Reynos de las Indias. 1680. Disponível em: . Acesso em: 26 fev.2014.

VALDIVIA, Pedro de. Carta al Emperador Carlos V. 15 de Octubre de 1550. In: Fuentes Documentales y Bibliográficas para el Estudio de la Historia de Chile. Disponível em: . Acesso em: 1º mar.2014.





[1] Mestre em Direito Internacional pela USP. Doutorando em Integração da América latina pela USP.
[2] REINO DE ESPAÑA, Recopilación de Leyes de los Reynos de las Indias, 1680: 5.
[3] Centro de Estudios Constitucionales, 2013, art. 267, “Diferendo marítimo”, primeiro parágrafo.
[4] Cf. Centro de Estudios Constitucionales, 2013, art. 267, “Diferendo marítimo”, segundo parágrafo.
[5] Apud BAZÁN, César Vásquez. El Tratado Secreto entre Perú y Bolivia. Grifos nossos.
[6] Centro de Estudios Constitucionales, 2013, art. 267, “Diferendo marítimo”, quinto parágrafo.
[7] Tratado de Paz y Amistad, Bolivia y Chile, firmado en 20 de octubre de 1904. Grigos nossos.
[8] ESTADO PLURINACIONAL DE BOLIVIA. Constitución Política del Estado, 2009.
[9] O instituto deriva do Direito Romano: “Na reivindicação, que é o meio judicial de proteção do direito de propriedade, o réu é o possuidor. Isto significa que o ônus de provar o seu direito incumbe a quem não está na posse, ficando o réu na cômoda posição de simplesmente negar o direito alegado por aquele, isto é, pelo autor”. (MARKY, Thomas. Curso elementar de Direito Romano. São Paulo: Saraiva, 1996.
[10] Cf. Centro de Estudios Constitucionales, 2013, art. 267, “Presentación”. Grifo nosso.