Fábio Aristimunho Vargas[1]
Introdução
Colômbia e
Nicarágua mantêm há décadas um litígio quanto à posse do arquipélago de San
Andrés e Providencia, localizado no Caribe. A questão foi por duas vezes objeto
de litígio junto à Corte Internacional de Justiça. Em sentença datada de 2007,
a Corte entendeu que as três ilhas principais do arquipélago pertencem à
Colômbia, porém não se manifestou quanto a outras ilhotas desabitadas nem
quanto à fronteira marítima entre os dois países.
No segundo
litígio, cuja sentença data de 2012, a Corte confirmou que as ilhotas
pertenciam à Colômbia; por outro lado, a decisão redefiniu as fronteiras
marítimas entre os dois países, atribuindo à Nicarágua uma porção significativa
de mar que até então os colombianos consideravam como parte de seus domínios
marítimos.
O presente artigo
se propõe analisar o litígio marítimo e territorial entre os dois países.
1 Origens do conflito
A Colômbia
justifica seus direitos históricos sobre o arquipélago de San Andrés e
Providencia com base em antigos títulos, como a Real Orden (norma editada pelo
rei destinada aos domínios espanhóis de ultramar) datada de 20 de novembro de
1803, que dispunha o seguinte, in verbis:
El Rey ha resuelto que las islas de San Andrés y la
parte de la Costa de Mosquitos desde el Cabo de Gracias a Dios, inclusive,
hacia el río Chagres, queden segregadas de la Capitanía General de Guatemala y
dependientes del Virreinato de Santa Fé, y se ha servido Su Majestad conceder
al Gobernador de las expresadas islas, D. Tomás O’Neilie, el sueldo de dos mil
pesos fuertes en lugar de los mil quinientos que actualmente disfruta.[2]
Como se vê, esse
documento cedera as referidas ilhas, então pertencentes à Capitania Geral da
Guatemala, ao Vice-Reino de Santa Fé, também conhecido como Vice-Reino de Nova
Granada, jurisdição colonial da Espanha cuja área compreendia os territórios
atuais de Colômbia, Venezuela, Panamá e Equador.
Em 24 e maço de
1928, as duas partes firmaram em Manágua, com o objetivo de “pôr término ao
litígio territorial entre elas pendente e de estreitar os vínculos de
tradicional amizade que as unem”, o Tratado sobre Cuestiones Territoriales
entre Colombia y Nicaragua, também conhecido como Tratado Esguerra-Bárcenas em
referência aos presidentes signatários, ratificado pela Colômbia no mesmo ano e
pela Nicarágua em 1930. Segundo esse acordo a Colômbia passava a reconhecer a
Costa dos Mosquitos (extensão do litoral atlântico da América Central Ístmica)
e ilhas adjacentes como de domínio nicaraguense, ao passo que a Nicarágua
reconhecia a soberania colombiana sobre o arquipélago de San Andrés y
Providencia. Assim dispõe o Tratado de 1928, em seu sucinto texto de apenas
dois artigos:
Artículo I.
La República de Colombia reconoce la soberanía y pleno
dominio de la República de Nicaragua sobre la Costa de Mosquitos compreendida
entre el cabo de Gracias a ios y el río San Juan, y sobre las islas Mangle
Grande y mangle Chico, en el Océano Atlático (Great Corn Island, y Little Corn
Island), y la República de Nicaragua reconoce la soberanía y pleno dominio de
la República de Colombia sobre las islas de San Andrés, Providencia, Santa
Catalina y todas las demás islas, islotes y cayos que haen parte de dicho
Archipiélago de San Andrés.[3]
Na época desse
acordo, o Direito Internacional ainda não se havia ocupado do Direito do Mar,
resultando que as fronteiras marítimas entre os dois países permaneceriam
indefinidas.
Em 4 de fevereiro
de 1980, a Junta de Reconstrucción Nacional da Nicarágua expediu uma Declaração
por meio da qual declarava nulo e inválido o Tratado de 1928. Alegando violação
a sua soberania e que à época da celebração do acordo o país estava
militarmente ocupado pelos EUA, a Nicarágua passou a reclamar como próprias as
ilhotas (cayos) de Roncador,
Quitasueño e Serrana, não incluídos no Tratado de 1928, territórios que nesse
momento eram inclusive objeto de litígio entre Colômbia e EUA. Dizia
textualmente a referida Declaração:
Todas
esas islas, islotes, cayos y bancos [del Archipiélago de San Andrés] son parte
integrante e indivisible de la plataforma continental de Nicaragua, territorio
submergido que es prolongación natural del territorio principal y por lo mismo
incuestionablemente territorio soberano de Nicaragua. [...] Las circunstancias
históricas que vivió nuestro pueblo desde el año 1909 impidieron una verdadera
defensa de nuestra plataforma continental, aguas jurisdiccionales y territorios
insulares que emergen de dicha plataforma continental, ausencia de soberanía
que se manifestó [...][4]
Paralelamente, a
referida Junta divulgou um memorial, denominado Libro blanco, que reunia a documentação que considerava suficiente
para embasar suas reivindicações de soberania sobre certos territórios
insulares e a plataforma continental.
No dia seguinte à
Declaração nicaraguense, o governo colombiano rechaçou por meio de nota as
pretensões daquele país. Paralelamente, preparou um memorial com os principais
argumentos e documentos a sustentar suas pretensões territoriais, denominado Libro blanco de la República de Colombia,
1980. Desde a declaração de nulidade por parte de Manágua, os dois países
têm enfrentado constantes atritos diplomáticos.
2 O litígio na Corte Internacional de Justiça
Em 6 de dezembro
de 2001, a Nicarágua apresentou o caso ante a Corte Internacional de Justiça.
Em seus argumentos a Colômbia alegou que a declaração de nulidade do Tratado de
1928 por parte da Nicarágua constituía um ato unilateral contrário ao Direito
Internacional.
A sentença da
Corte foi proferida em 13 de dezembro de 2007, confirmando que o Tratado de
1928 atribuía à Colômbia a soberania sobre o Arquipélago de San Andrés y
Providencia, embora não se manifestasse acerca das ilhotas de Roncador, Serrana
e Quitasueño nem resolvesse a questão da fronteira marítima entre ambos os
países.
Em uma nova
apreciação da matéria, em sentença datada de 19 de novembro de 2012, a Corte de
Haia endossou que todas as ilhotas em questão – Roncador, Serrana, Serranilla,
Bajo Nuevo, Quitasueño, Albuquerque e Este Sudeste – pertenciam à Colômbia. No
entanto, a Corte redefiniu a fronteira marítima e o domínio sobre as águas
limítrofes entre os dois países, outorgando à Nicarágua cerca de 40% das águas
da região sob litígio, ou 75.000 km2 de mar, que a Colômbia até
então considerava como próprias.
Resumem-se, a seguir, as principais decisões
adotadas pela Corte Internacional de Justiça na sentença de 2012 sobre a
disputa territorial e marítima entre Colômbia e Nicarágua:[5]
(1) Por unanimidade, a Corte entendeu que a
República da Colômbia tem a soberania sobre as ilhas de Alburquerque, Bajo
Nuevo, Este Sudeste,
Quitasueño, Roncador, Serrana e Serranilla;
(2) Por quatorze votos a um, entendeu admissível
a reivindicação da República da Nicarágua de que a Corte julgasse e declarasse
que a forma apropriada de delimitação é um limite da plataforma continental
dividindo por partes iguais os direitos que se sobrepõem a uma plataforma
continental de ambas as partes;
(3) Por unanimidade, rejeitou a solicitação da
Nicarágua de que a Corte traçasse uma fronteira na plataforma continental
dividindo em iguais partes os direitos que se sobrepõem na plataforma
continental dos litigantes;
(4) Por unanimidade, decidiu que a linha da
fronteira marítima única a delimitar a plataforma continental e as zonas
económicas exclusivas da Nicarágua e Colômbia devem seguir linhas geodésicas
que liguem os pontos com as seguintes coordenadas:
Latitude Norte Longitude Oeste
1 . 13° 46’ 35,7” 81° 29’ 34,7”
2 . 13° 31’ 08.0” 81° 45’ 59,4”
3 . 13° 03’ 15,8” 81° 46’ 22,7”
4 . 12° 50’ 12,8” 81° 59’ 22,6”
5 . 12° 07’ 28,8” 82° 07’ 27,7”
6 . 12° 00’ 04.5” 81° 57’ 57,8”
A sentença detalha ainda o modo como
esses pontos devem ser conectados.
(5) Por unanimidade, decidiu que a fronteira
marítima única em torno de Quitasueño e Serrana seguirão, respectivamente, um
“envoltório” (envelope, no original
em inglês) de 12 milhas náuticas de arcos medidos a partir de QS 32 e de
baixios a descoberto localizados dentro de 12 milhas náuticas da QS 32, e um
“envoltório” de 12 milhas náuticas de arcos medidos a partir de Serrana e as
outras ilhotas na sua vizinhança;
(6) Por unanimidade, rejeitou a reivindicação da
Nicarágua de que a Corte declarasse que a República da Colômbia não estaria
agindo de acordo com suas obrigações sob o Direito Internacional ao impedi-la
de ter acesso aos recursos naturais a leste do meridiano 82.
3 Recepção da sentença da Corte Internacional de Justiça
Convém ressaltar
que a Colômbia, ao contrário do que foi por vezes referido na imprensa à época
da sentença, com a decisão da CIJ não perdeu seu mar territorial, que
permaneceu inalterado, mas tão-somente porções de sua zona econômica exclusiva.
O mapa a seguir ilustra a mudança na conformação da fronteira marítima entre
Colômbia e Nicarágua:
Imagem: mapa
que sintetiza as reivindicações das partes e as alterações na fronteira
marítima determinadas pela sentença da Corte de Haia de 2012. Fonte: El
Universal[6]
Essa segunda
decisão da Corte de Haia não foi bem recebida pela Colômbia. Embora o governo
colombiano não negasse a validade da decisão judicial internacional, o então
presidente do país, Juan Manuel Santos, declarou-a “inaplicável”. O governo
nicaraguense até o momento não teve êxito em seus intentos de iniciar
negociações bilaterais quanto à aplicabilidade da sentença.
De igual maneira,
por conta da referida sentença desfavorável de 2012, a Colômbia decidiu se
desligar do Tratado Americano de Soluções Pacíficas (Pacto de Bogotá),
celebrado durante a IX Conferência Panamericana, em 1948, que estabelece
mecanismos para a solução pacífica de controvérsias entre Estados do continente
americano. De acordo com o Pacto de Bogotá, os Estados partes se comprometem a
submeter à Corte Internacional de Justiça as controvérsias surgidas entre si e
a acatarem suas resoluções, nos seguintes termos:[7]
Artigo XXXI
De conformidade com o inciso
2º do Artigo 36 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, as Altas Partes
Contratantes declaram que reconhecem, com relação a qualquer outro Estado
americano, como obrigatória ipso facto, sem necessidade de nenhum convênio
especial, desde que esteja em vigor o presente Tratado, a jurisdição da citada
Corte em todas as controvérsias de ordem jurídica que surjam entre elas e que
versem sobre:
a) A interpretação de um
tratado;
b) Qualquer questão de
Direito Internacional;
c) A existência de qualquer
fato que, se comprovado, constitua violação de uma obrigação internacional;
d) A natureza ou extensão da
reparação a ser feita em virtude do desrespeito a uma obrigação internacional.
Logo após a proclamação
da sentença da CIJ em 2012, a Colômbia decidiu denunciar o Pacto de Bogotá, no
que se pode considerar uma crítica histórica à atuação da Corte. O instrumento
com a denúncia foi recebido pela Secretaria Geral da Organização dos Estados
Americanos (OEA) na data de 28 de novembro de 2012, tendo um prazo de um ano
para surtir efeitos.
Embora essa
medida por parte da Colômbia não tenha efeitos retroativos nem afete processos
em andamento (“A denúncia não terá efeito algum sobre os processos pendentes e iniciados
antes de ser transmitido o aviso respectivo”, nos termos do Pacto de Bogotá,
art. LVI), devendo o país de qualquer modo acatar a sentença proferida pela CIJ
quanto à fronteira marítima com a Nicarágua, a partir de um ano da denúncia
considerar-se-á cessada a jurisdição da CIJ para demandas futuras propostas por
outros países contra Bogotá.
Conclusão
Desde uma
perspectiva distanciada, não é difícil vislumbrar certos méritos na sentença da
Corte de Haia ao reconhecer, com justiça, os direitos da Colômbia sobre as
ilhas e atribuir porções marítimas à Nicarágua. Quando se contrasta a área
total em litígio, englobando ilhas e mar, com o domínio marítimo da Nicarágua
no Atlântico (mar territorial e zona econômica exclusiva), percebe-se que a
extensão resulta quase equivalente.
Ou seja, um
conjunto de pequenas ilhas com uma área total de 52 km2, habitadas
por uma população de cerca de 85.000 habitantes, tem a sua disposição uma
porção de mar comparável à que possui, em seu litoral Atlântico, um país com
quase 130.000 km2 habitado por 5.5 milhões de habitantes. Mesmo que
se considere tão-somente a Costa de Mosquitos nicaraguense, ou seja, a faixa
litorânea atlântica do país, ainda assim são 400 km de litoral densamente
povoados que defrontam com o arquipélago colombiano. Não seria justo que a
porção insular colombiana recebesse o mesmo tratamento que o território
continental nicaraguense quanto aos direitos sobre o mar e a plataforma
continental, considerando-se os contrastes assinalados.
Essas
constatações podem não ter sido consideradas – como não o foram – na tomada de
decisão dos juízes de Haia em sua salomônica divisão, em que atribuíram à
Colômbia o arquipélago com seu mar territorial e à Nicarágua boa parcela da
zona econômica exclusiva circundante, mas constituem reflexões importantes
sobre o modo como uma decisão judicial como essa pode impactar objetivamente as
populações envolvidas.
Referências bibliográficas
EL UNIVERSAL. No se afectó el mar territorial. 25 de Noviembre de 2012. Disponível em:
.
Acesso em: 17 fev. 2014.
INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Territorial Dispute and Maritime Delimitation (Nicaragua v. Colombia). Summary
of the Judgement of 19 November 2012.
INTERNATIONAL COURT
OF JUSTICE. Territorial Dispute and
Maritime Delimitation (Nicaragua v. Colombia). Summary of the Judgement of 19 November 2012.
REINO DE ESPAÑA.
Real Orden de 20 de novembro de 1803. Apud
REPÚBLICA DE COLOMBIA. Libro blanco de la
república de Colombia, 1980. p. 14.
REPÚBLICA DE
COLOMBIA. Libro blanco de la República de
Colombia, 1980. Diego Uribe Vargas, Ministro de Relaciones Exteriores.
Bogotá: Imprenta Nacional, 1981. Disponível em:
. Acesso em: 17
fev.2014.
REZEK, Francisco. Direito Internacional Público. São
Paulo: Saraiva, 2009.
TRATADO AMERICANO DE
SOLUÇÕES PACÍFICAS (Pacto de Bogotá). Conclusão e assinatura: Bogotá –
Colômbia, 30 de abril de 1948. Promulgação no Brasil: Decreto nº 57.785, de 11
de fevereiro de 1966.
[1] Mestre
em Direito e doutorando em Integração da América Latina pela USP. Professor do
curso de Relações Internacionais da Universidade Federal da Integração
Latino-Americana (Unila).
[2] REINO DE
ESPAÑA, apud REPÚBLICA DE COLOMBIA, 1981,
p. 14. Há pequenas diferenças textuais entre o texto ora reproduzido e o
encontrado em outras fontes, a começar pelo nome da medida, ora designada como
Real Cédula (desígnio direto do soberano, que firmava “Yo, el Rey”), ora como
Real Orden (decreto firmado por um ministro expressando a vontade do soberano).
Também os valores do soldo do governador divergem entre mil e duzentos pesos
fortes “anuais” e mil e quinhentos pesos fortes. Ademais, a fonte ora
empregada, o Libro blanco colombiano,
data a medida de 30 e novembro de 1803, em vez de 20 de novembro, sendo que
esta última nos parece a acertada.
[3]
REPÚBLICA DE COLOMBIA, 1981, p. 90.
[4]
NICARAGUA, Declaración del 4 de febrero de 1980. Apud REPÚBLICA DE COLOMBIA, Libro
blanco..., p. 81. A confissão de “ausência de soberania” por parte da
Nicarágua, ao final do fragmento transcrito, seria empregada pelo governo
colombiano como prova e confissão da improcedência das reivindicações
nicaraguenses.
[5] INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Territorial Dispute and Maritime
Delimitation (Nicaragua v. Colombia). Summary of the Judgement of 19 November
2012. p. 11-13.
[6] EL UNIVERSAL. No se afectó el mar
territorial. 25 de Noviembre de 2012. Disponível em:
.
Acesso em: 17 fev. 2014.
[7] Tratado Americano de Soluções Pacíficas (Pacto de
Bogotá). Conclusão e assinatura: Bogotá – Colômbia, 30 de abril de 1948.
Promulgação no Brasil: Decreto nº 57.785, de 11 de fevereiro de 1966.
Um comentário:
É sempre interessante esse tipo de coisa, então eu gostaria de começar a lê-los online aqui agora thankfully'm descansando em um hotel em buenos aires argentina
Postar um comentário