8 de março de 2014

A nova fronteira marítima Colômbia-Nicarágua e o impacto da decisão da Corte Internacional de Justiça


Fábio Aristimunho Vargas[1]

Introdução

Colômbia e Nicarágua mantêm há décadas um litígio quanto à posse do arquipélago de San Andrés e Providencia, localizado no Caribe. A questão foi por duas vezes objeto de litígio junto à Corte Internacional de Justiça. Em sentença datada de 2007, a Corte entendeu que as três ilhas principais do arquipélago pertencem à Colômbia, porém não se manifestou quanto a outras ilhotas desabitadas nem quanto à fronteira marítima entre os dois países.
No segundo litígio, cuja sentença data de 2012, a Corte confirmou que as ilhotas pertenciam à Colômbia; por outro lado, a decisão redefiniu as fronteiras marítimas entre os dois países, atribuindo à Nicarágua uma porção significativa de mar que até então os colombianos consideravam como parte de seus domínios marítimos.
O presente artigo se propõe analisar o litígio marítimo e territorial entre os dois países.

1 Origens do conflito

A Colômbia justifica seus direitos históricos sobre o arquipélago de San Andrés e Providencia com base em antigos títulos, como a Real Orden (norma editada pelo rei destinada aos domínios espanhóis de ultramar) datada de 20 de novembro de 1803, que dispunha o seguinte, in verbis:

El Rey ha resuelto que las islas de San Andrés y la parte de la Costa de Mosquitos desde el Cabo de Gracias a Dios, inclusive, hacia el río Chagres, queden segregadas de la Capitanía General de Guatemala y dependientes del Virreinato de Santa Fé, y se ha servido Su Majestad conceder al Gobernador de las expresadas islas, D. Tomás O’Neilie, el sueldo de dos mil pesos fuertes en lugar de los mil quinientos que actualmente disfruta.[2]

Como se vê, esse documento cedera as referidas ilhas, então pertencentes à Capitania Geral da Guatemala, ao Vice-Reino de Santa Fé, também conhecido como Vice-Reino de Nova Granada, jurisdição colonial da Espanha cuja área compreendia os territórios atuais de Colômbia, Venezuela, Panamá e Equador.
Em 24 e maço de 1928, as duas partes firmaram em Manágua, com o objetivo de “pôr término ao litígio territorial entre elas pendente e de estreitar os vínculos de tradicional amizade que as unem”, o Tratado sobre Cuestiones Territoriales entre Colombia y Nicaragua, também conhecido como Tratado Esguerra-Bárcenas em referência aos presidentes signatários, ratificado pela Colômbia no mesmo ano e pela Nicarágua em 1930. Segundo esse acordo a Colômbia passava a reconhecer a Costa dos Mosquitos (extensão do litoral atlântico da América Central Ístmica) e ilhas adjacentes como de domínio nicaraguense, ao passo que a Nicarágua reconhecia a soberania colombiana sobre o arquipélago de San Andrés y Providencia. Assim dispõe o Tratado de 1928, em seu sucinto texto de apenas dois artigos:

Artículo I.
La República de Colombia reconoce la soberanía y pleno dominio de la República de Nicaragua sobre la Costa de Mosquitos compreendida entre el cabo de Gracias a ios y el río San Juan, y sobre las islas Mangle Grande y mangle Chico, en el Océano Atlático (Great Corn Island, y Little Corn Island), y la República de Nicaragua reconoce la soberanía y pleno dominio de la República de Colombia sobre las islas de San Andrés, Providencia, Santa Catalina y todas las demás islas, islotes y cayos que haen parte de dicho Archipiélago de San Andrés.[3]

Na época desse acordo, o Direito Internacional ainda não se havia ocupado do Direito do Mar, resultando que as fronteiras marítimas entre os dois países permaneceriam indefinidas.
Em 4 de fevereiro de 1980, a Junta de Reconstrucción Nacional da Nicarágua expediu uma Declaração por meio da qual declarava nulo e inválido o Tratado de 1928. Alegando violação a sua soberania e que à época da celebração do acordo o país estava militarmente ocupado pelos EUA, a Nicarágua passou a reclamar como próprias as ilhotas (cayos) de Roncador, Quitasueño e Serrana, não incluídos no Tratado de 1928, territórios que nesse momento eram inclusive objeto de litígio entre Colômbia e EUA. Dizia textualmente a referida Declaração:

Todas esas islas, islotes, cayos y bancos [del Archipiélago de San Andrés] son parte integrante e indivisible de la plataforma continental de Nicaragua, territorio submergido que es prolongación natural del territorio principal y por lo mismo incuestionablemente territorio soberano de Nicaragua. [...] Las circunstancias históricas que vivió nuestro pueblo desde el año 1909 impidieron una verdadera defensa de nuestra plataforma continental, aguas jurisdiccionales y territorios insulares que emergen de dicha plataforma continental, ausencia de soberanía que se manifestó [...][4]

Paralelamente, a referida Junta divulgou um memorial, denominado Libro blanco, que reunia a documentação que considerava suficiente para embasar suas reivindicações de soberania sobre certos territórios insulares e a plataforma continental.
No dia seguinte à Declaração nicaraguense, o governo colombiano rechaçou por meio de nota as pretensões daquele país. Paralelamente, preparou um memorial com os principais argumentos e documentos a sustentar suas pretensões territoriais, denominado Libro blanco de la República de Colombia, 1980. Desde a declaração de nulidade por parte de Manágua, os dois países têm enfrentado constantes atritos diplomáticos.

2 O litígio na Corte Internacional de Justiça

Em 6 de dezembro de 2001, a Nicarágua apresentou o caso ante a Corte Internacional de Justiça. Em seus argumentos a Colômbia alegou que a declaração de nulidade do Tratado de 1928 por parte da Nicarágua constituía um ato unilateral contrário ao Direito Internacional.
A sentença da Corte foi proferida em 13 de dezembro de 2007, confirmando que o Tratado de 1928 atribuía à Colômbia a soberania sobre o Arquipélago de San Andrés y Providencia, embora não se manifestasse acerca das ilhotas de Roncador, Serrana e Quitasueño nem resolvesse a questão da fronteira marítima entre ambos os países.
Em uma nova apreciação da matéria, em sentença datada de 19 de novembro de 2012, a Corte de Haia endossou que todas as ilhotas em questão – Roncador, Serrana, Serranilla, Bajo Nuevo, Quitasueño, Albuquerque e Este Sudeste – pertenciam à Colômbia. No entanto, a Corte redefiniu a fronteira marítima e o domínio sobre as águas limítrofes entre os dois países, outorgando à Nicarágua cerca de 40% das águas da região sob litígio, ou 75.000 km2 de mar, que a Colômbia até então considerava como próprias.
Resumem-se, a seguir, as principais decisões adotadas pela Corte Internacional de Justiça na sentença de 2012 sobre a disputa territorial e marítima entre Colômbia e Nicarágua:[5]

(1)     Por unanimidade, a Corte entendeu que a República da Colômbia tem a soberania sobre as ilhas de Alburquerque, Bajo Nuevo, Este Sudeste, Quitasueño, Roncador, Serrana e Serranilla;

(2)     Por quatorze votos a um, entendeu admissível a reivindicação da República da Nicarágua de que a Corte julgasse e declarasse que a forma apropriada de delimitação é um limite da plataforma continental dividindo por partes iguais os direitos que se sobrepõem a uma plataforma continental de ambas as partes;

(3)     Por unanimidade, rejeitou a solicitação da Nicarágua de que a Corte traçasse uma fronteira na plataforma continental dividindo em iguais partes os direitos que se sobrepõem na plataforma continental dos litigantes;

(4)     Por unanimidade, decidiu que a linha da fronteira marítima única a delimitar a plataforma continental e as zonas económicas exclusivas da Nicarágua e Colômbia devem seguir linhas geodésicas que liguem os pontos com as seguintes coordenadas:
   Latitude Norte      Longitude Oeste
1 . 13° 46’ 35,7”      81° 29’ 34,7”
2 . 13° 31’ 08.0”      81° 45’ 59,4”
3 . 13° 03’ 15,8”      81° 46’ 22,7”
4 . 12° 50’ 12,8”      81° 59’ 22,6”
5 . 12° 07’ 28,8”      82° 07’ 27,7”
6 . 12° 00’ 04.5”      81° 57’ 57,8”
          A sentença detalha ainda o modo como esses pontos devem ser conectados.
(5)     Por unanimidade, decidiu que a fronteira marítima única em torno de Quitasueño e Serrana seguirão, respectivamente, um “envoltório” (envelope, no original em inglês) de 12 milhas náuticas de arcos medidos a partir de QS 32 e de baixios a descoberto localizados dentro de 12 milhas náuticas da QS 32, e um “envoltório” de 12 milhas náuticas de arcos medidos a partir de Serrana e as outras ilhotas na sua vizinhança;

(6)     Por unanimidade, rejeitou a reivindicação da Nicarágua de que a Corte declarasse que a República da Colômbia não estaria agindo de acordo com suas obrigações sob o Direito Internacional ao impedi-la de ter acesso aos recursos naturais a leste do meridiano 82.

3 Recepção da sentença da Corte Internacional de Justiça

Convém ressaltar que a Colômbia, ao contrário do que foi por vezes referido na imprensa à época da sentença, com a decisão da CIJ não perdeu seu mar territorial, que permaneceu inalterado, mas tão-somente porções de sua zona econômica exclusiva. O mapa a seguir ilustra a mudança na conformação da fronteira marítima entre Colômbia e Nicarágua:

Imagem: mapa que sintetiza as reivindicações das partes e as alterações na fronteira marítima determinadas pela sentença da Corte de Haia de 2012. Fonte: El Universal[6]

Essa segunda decisão da Corte de Haia não foi bem recebida pela Colômbia. Embora o governo colombiano não negasse a validade da decisão judicial internacional, o então presidente do país, Juan Manuel Santos, declarou-a “inaplicável”. O governo nicaraguense até o momento não teve êxito em seus intentos de iniciar negociações bilaterais quanto à aplicabilidade da sentença.
De igual maneira, por conta da referida sentença desfavorável de 2012, a Colômbia decidiu se desligar do Tratado Americano de Soluções Pacíficas (Pacto de Bogotá), celebrado durante a IX Conferência Panamericana, em 1948, que estabelece mecanismos para a solução pacífica de controvérsias entre Estados do continente americano. De acordo com o Pacto de Bogotá, os Estados partes se comprometem a submeter à Corte Internacional de Justiça as controvérsias surgidas entre si e a acatarem suas resoluções, nos seguintes termos:[7]

Artigo XXXI
De conformidade com o inciso 2º do Artigo 36 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, as Altas Partes Contratantes declaram que reconhecem, com relação a qualquer outro Estado americano, como obrigatória ipso facto, sem necessidade de nenhum convênio especial, desde que esteja em vigor o presente Tratado, a jurisdição da citada Corte em todas as controvérsias de ordem jurídica que surjam entre elas e que versem sobre:
a) A interpretação de um tratado;
b) Qualquer questão de Direito Internacional;
c) A existência de qualquer fato que, se comprovado, constitua violação de uma obrigação internacional;
d) A natureza ou extensão da reparação a ser feita em virtude do desrespeito a uma obrigação internacional.

Logo após a proclamação da sentença da CIJ em 2012, a Colômbia decidiu denunciar o Pacto de Bogotá, no que se pode considerar uma crítica histórica à atuação da Corte. O instrumento com a denúncia foi recebido pela Secretaria Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) na data de 28 de novembro de 2012, tendo um prazo de um ano para surtir efeitos.
Embora essa medida por parte da Colômbia não tenha efeitos retroativos nem afete processos em andamento (“A denúncia não terá efeito algum sobre os processos pendentes e iniciados antes de ser transmitido o aviso respectivo”, nos termos do Pacto de Bogotá, art. LVI), devendo o país de qualquer modo acatar a sentença proferida pela CIJ quanto à fronteira marítima com a Nicarágua, a partir de um ano da denúncia considerar-se-á cessada a jurisdição da CIJ para demandas futuras propostas por outros países contra Bogotá.

Conclusão

Desde uma perspectiva distanciada, não é difícil vislumbrar certos méritos na sentença da Corte de Haia ao reconhecer, com justiça, os direitos da Colômbia sobre as ilhas e atribuir porções marítimas à Nicarágua. Quando se contrasta a área total em litígio, englobando ilhas e mar, com o domínio marítimo da Nicarágua no Atlântico (mar territorial e zona econômica exclusiva), percebe-se que a extensão resulta quase equivalente.
Ou seja, um conjunto de pequenas ilhas com uma área total de 52 km2, habitadas por uma população de cerca de 85.000 habitantes, tem a sua disposição uma porção de mar comparável à que possui, em seu litoral Atlântico, um país com quase 130.000 km2 habitado por 5.5 milhões de habitantes. Mesmo que se considere tão-somente a Costa de Mosquitos nicaraguense, ou seja, a faixa litorânea atlântica do país, ainda assim são 400 km de litoral densamente povoados que defrontam com o arquipélago colombiano. Não seria justo que a porção insular colombiana recebesse o mesmo tratamento que o território continental nicaraguense quanto aos direitos sobre o mar e a plataforma continental, considerando-se os contrastes assinalados.
Essas constatações podem não ter sido consideradas – como não o foram – na tomada de decisão dos juízes de Haia em sua salomônica divisão, em que atribuíram à Colômbia o arquipélago com seu mar territorial e à Nicarágua boa parcela da zona econômica exclusiva circundante, mas constituem reflexões importantes sobre o modo como uma decisão judicial como essa pode impactar objetivamente as populações envolvidas.

Referências bibliográficas

EL UNIVERSAL. No se afectó el mar territorial. 25 de Noviembre de 2012. Disponível em: . Acesso em: 17 fev. 2014.

INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Territorial Dispute and Maritime Delimitation (Nicaragua v. Colombia). Summary of the Judgement of 19 November 2012.

INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Territorial Dispute and Maritime Delimitation (Nicaragua v. Colombia). Summary of the Judgement of 19 November 2012.

REINO DE ESPAÑA. Real Orden de 20 de novembro de 1803. Apud REPÚBLICA DE COLOMBIA. Libro blanco de la república de Colombia, 1980. p. 14.

REPÚBLICA DE COLOMBIA. Libro blanco de la República de Colombia, 1980. Diego Uribe Vargas, Ministro de Relaciones Exteriores. Bogotá: Imprenta Nacional, 1981. Disponível em: . Acesso em: 17 fev.2014.

REZEK, Francisco. Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2009.

TRATADO AMERICANO DE SOLUÇÕES PACÍFICAS (Pacto de Bogotá). Conclusão e assinatura: Bogotá – Colômbia, 30 de abril de 1948. Promulgação no Brasil: Decreto nº 57.785, de 11 de fevereiro de 1966.




[1] Mestre em Direito e doutorando em Integração da América Latina pela USP. Professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila).
[2] REINO DE ESPAÑA, apud REPÚBLICA DE COLOMBIA, 1981, p. 14. Há pequenas diferenças textuais entre o texto ora reproduzido e o encontrado em outras fontes, a começar pelo nome da medida, ora designada como Real Cédula (desígnio direto do soberano, que firmava “Yo, el Rey”), ora como Real Orden (decreto firmado por um ministro expressando a vontade do soberano). Também os valores do soldo do governador divergem entre mil e duzentos pesos fortes “anuais” e mil e quinhentos pesos fortes. Ademais, a fonte ora empregada, o Libro blanco colombiano, data a medida de 30 e novembro de 1803, em vez de 20 de novembro, sendo que esta última nos parece a acertada.
[3] REPÚBLICA DE COLOMBIA, 1981, p. 90.
[4] NICARAGUA, Declaración del 4 de febrero de 1980. Apud REPÚBLICA DE COLOMBIA, Libro blanco..., p. 81. A confissão de “ausência de soberania” por parte da Nicarágua, ao final do fragmento transcrito, seria empregada pelo governo colombiano como prova e confissão da improcedência das reivindicações nicaraguenses.
[5] INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Territorial Dispute and Maritime Delimitation (Nicaragua v. Colombia). Summary of the Judgement of 19 November 2012. p. 11-13.
[6] EL UNIVERSAL. No se afectó el mar territorial. 25 de Noviembre de 2012. Disponível em: . Acesso em: 17 fev. 2014.
[7] Tratado Americano de Soluções Pacíficas (Pacto de Bogotá). Conclusão e assinatura: Bogotá – Colômbia, 30 de abril de 1948. Promulgação no Brasil: Decreto nº 57.785, de 11 de fevereiro de 1966.
[8] INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Territorial Dispute and Maritime Delimitation (Nicaragua v. Colombia). Summary of the Judgement of 19 November 2012. p. 31

Um comentário:

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