8 de maio de 2012

CONSIDERAÇÕES SOBRE A TRIPARTIÇÃO DE PODERES NO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO


Fábio Aristimunho Vargas[1]

1. Introdução

Nas monarquias antigas, medievais e até o início da Idade Moderna, não havia em princípio uma divisão funcional dos poderes do governo, sendo o monarca e (ou) as assembleias populares os encarregados de legislar, executar as leis e julgar as controvérsias. Era esse o caso, por exemplo, do tirano Creonte, rei lendário de Tebas retratado por Sófocles em sua tragédia Antígona, que acumulava poderes suficientes para baixar um decreto proibindo que se prestassem honras fúnebre a Polinice, para julgar sua irmã Antígona por havê-lo enterrado em desobediência à “lei dos homens” e para executar a lei ao determinar o cumprimento da pena. Ou seja, Creonte concentrava em si os poderes de criar, julgar e executar a lei.
Essa forma de exercício do poder sofreu importante impacto com o processo de constitucionalização que ganhou força ao longo do séc. XIX. Atualmente, todo sistema constitucional se baseia no princípio da divisão do poder do Estado em três órgãos distintos, independentes e harmônicos entre si: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Desses três órgãos, um é responsável por elaborar a lei (Legislativo), outro por executá-la (Executivo) e o terceiro por julgá-la (Judiciário).
Não se trata de uma divisão meramente burocrática, como se dá com a divisão material do poder em departamentos (ministérios, secretarias etc.), nem é uma divisão estanque. Não se presume que os poderes devam atuar com plena independência e plena autonomia. O poder é um só e o que se divide é o seu exercício em três órgãos distintos. Trata-se, em suma, de uma divisão funcional do poder de soberania.
O presente artigo tem por objetivo expor sucintamente os fundamentos teóricos da divisão dos poderes e, em seguida, analisar tal divisão à luz do constitucionalismo brasileiro.

2. Teóricos da divisão de poderes

A grande preocupação dos teóricos da divisão de poderes foi evitar a concentração de tanto poder numa só pessoa ou órgão. A limitação do poder pelo poder é o objetivo da divisão de poderes.
Platão teorizava que “não se deve estabelecer jamais uma autoridade demasiado poderosa e sem freio nem paliativos”, elogiando a contraposição, em Atenas, dos poderes do rei em face da assembleia dos anciãos. Aristóteles, na obra Política, esboçou a tríplice divisão de poderes.
John Locke, filósofo empirista inglês do séc. XVII, aconselhava a divisão do poder em quatro funções. Também Rousseau, filósofo francês do séc. XVII, concebeu uma doutrina da separação dos poderes.
Foi Montesquieu, autor de O espírito das leis (1748), o teórico que sistematizou o princípio da divisão dos poderes com maior profundidade. Há aí um evidente paralelo com a tipologia das formas de governo estabelecida por Aristóteles:

Monarquia (governo de um)

Poder Executivo
Aristocracia (governo dos melhores)

Poder Judiciário
Democracia (governo do povo)

Poder Legislativo
Montesquieu enfatizava a necessidade de equilíbrio e harmonia entre os três poderes.

3. Divisão dos poderes nas constituições modernas

A formulação de Montesquieu da divisão tripartite do poder foi desde logo adotada como “dogma” pelos Estados liberais e assim permanece até hoje sem grandes alterações.
A Constituição da Virgínia, de 1776, foi a primeira Constituição escrita a adotar a doutrina de Montesquieu, seguida pelas de outras ex-colônias inglesas da América do Norte. Por fim, em 1787, a Constituição dos Estados Unidos da América inscreveu a divisão tripartite de poderes como um de seus princípios fundamentais. Os constitucionalistas estadunidenses chamam de sistema de freios e contrapesos essa doutrina de contenção do poder pelo poder.
A divisão dos poderes foi celebrada também pela Revolução Francesa. Assim afirma o art. 16º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789): “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”.

4. Divisão dos poderes no constitucionalismo brasileiro

No Brasil sempre se respeitou a divisão de poderes. A Constituição do Império, de 1824, adotava a separação quadripartita de poderes conforme a formulação de Benjamin Constant: poderes Moderador, Legislativo, Executivo e Judiciário. Ao imperador cabia os poderes Moderador e Executivo. O Poder Moderador, situado hierarquicamente acima dos demais poderes, seria responsável pelo equilíbrio entre eles.
As Constituições brasileiras posteriores adotaram a divisão em três poderes conforme Montesquieu. A Constituição Federal de 1988 (CF/88) manteve o princípio nos seguintes termos: “Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

4.1 Poder Legislativo

Ao Legislativo cumpre, em síntese, legislar e fiscalizar os atos do Executivo.
Legislar significa elaborar leis. Os deputados federais, os senadores, os deputados estaduais e os vereadores são os legisladores e representam a sociedade, pois são eleitos pelos cidadãos para que os representem no momento de discutir temas de interesse público e propor leis.
O Legislativo tem mecanismos para controlar o Executivo, por meio de fiscalização contábil, financeira, orçamentária e patrimonial. Todas estas atribuições estão descritas no art. 44 da CF/88.
O Legislativo é estruturado em níveis federal, estadual e municipal.

a) Legislativo Federal

O Legislativo Federal (art. 44 a 75 da CF) é organizado em um sistema bicameral, ou seja, existem duas casas legislativas: o Senado Federal (representante dos estados e do DF) e a Câmara dos Deputados (representantes do povo). As duas casas juntas são chamadas de “Congresso Nacional”, que não é senão o parlamento brasileiro.
O Senado Federal é composto por 81 senadores, que representam as 27 unidades da Federação (26 estados federados e o Distrito Federal). Cada estado e o DF elegem três senadores para um mandato de oito anos. O Senado é renovado à razão de 1/3 e 2/3 a cada quatro anos. Tradicionalmente os países que adotam o Federalismo e o bicameralismo, a exemplo dos EUA, atribuem dois senadores a cada unidade da Federação; no Brasil o número de senadores por unidade foi aumentado de dois para três com a Constituição de 1946, e cada senador é eleito com dois suplentes.
A Câmara é formada por 513 deputados federais, que são os representantes do povo brasileiro. O mandato dos deputados federais é de quatro anos. Os estados e o DF elegem, cada um, um número de deputados federais proporcional à sua população. A partir de um cálculo complexo que parte da determinação constitucional de um mínimo de oito e um máximo de setenta deputados federais por unidade, chega-se à atual definição do número de deputados federais para cada unidade da Federação:



·        São Paulo (70)
·        Minas Gerais (53)
·        Rio de Janeiro (46)
·        Bahia (39)
·        Rio Grande do Sul (31)
·        Paraná (30)
·        Pernambuco (25)
·        Ceará (22)
·        Maranhão (18)
·        Pará (17)
·        Goiás (17)
·        Santa Catarina (16)
·        Paraíba (12)
·        Espírito Santo (10)
·        Piauí (10)
·        Alagoas (9)
·        Amazonas (8)
·        Rio Grande do Norte (8)
·        Mato Grosso (8)
·        Distrito Federal (8)
·        Mato Grosso do Sul (8)
·        Sergipe (8)
·        Rondônia (8)
·        Tocantins (8)
·        Acre (8)
·        Amapá (8)
·        Roraima (8)



Dessa forma de cálculo resultam algumas distorções no pacto federativo. Alguns estados acabam sub-representados enquanto outros gozam de hiper-representatividade. São Paulo, por exemplo, tem cerca de 21% da população do país e fica com apenas 13,6% das cadeiras da Câmara; Roraima, com cerca de 0,2% da população brasileira, tem garantido 1,6% das cadeiras. De maneira geral os estados da região norte têm representatividade maior do que sua proporção em relação à população brasileira.
Os deputados federais e os senadores podem se reeleger indefinidamente.
O Congresso Nacional elabora normas (processo legislativo) que valerão para todo o país. Podem dispor sobre todas as matérias de competência da União, que estão listadas no art. 21 e seguintes da CF.

b) Legislativo Estadual

A Assembleia Legislativa é a única casa legislativa estadual. Nela se reúnem os deputados estaduais eleitos pela população de cada estado. O mandato dos deputados estaduais é de quatro anos, podendo ser reeleitos. As leis elaboradas por eles valem apenas para o estado que os elegeu.
O número de cadeiras de cada Assembleia Legislativa é proporcional à população do estado.
No DF os deputados são chamados deputados distritais, instalados na Câmara Legislativa.

c) Legislativo Municipal

A Câmara Municipal é a única casa legislativa do município. Nela se reúnem os vereadores, eleitos pela população de cada município. Os vereadores têm um mandato de cinco anos podendo ser reeleitos. As leis elaboradas pelos vereadores valem apenas para o município que os elegeu. O DF não tem vereadores.

4.2. Poder Executivo

O Poder Executivo tem como função a prática de atos de governo e de administração da coisa pública. Isso quer dizer que o Executivo é o responsável por executar as leis e administrar a União, os estados e os municípios.
O Executivo no Brasil se divide em três instâncias: federal, estadual e municipal

a) Executivo Federal

O Chefe de governo (ou seja, o presidente da República) é o chefe do Executivo Federal. O presidente é eleito pelo voto direito dos brasileiros para um mandato de quatro anos, podendo haver uma reeleição subsequente.
O vice-presidente é eleito com o presidente, em uma única chapa. Em caso de impedimento do presidente, poderão sucedê-lo, nesta ordem: o vice-presidente, o presidente da Câmara dos Deputados, o presidente do Senado e o presidente do Supremo Tribunal Federal.
Algumas competências privativas do presidente da República:
·       nomear e exonerar os ministros de Estado;
·       exercer a direção superior da administração federal;
·       manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos;
·       participar do processo legislativo (criação de leis), na forma da CF;
·       celebrar tratados internacionais, sujeitos à aprovação do Congresso Nacional;
·       comandar as Forças Armadas (art. 84, CF) etc.
Os ministros de Estado são os assessores do presidente, sendo escolhidos diretamente por ele dentre brasileiros maiores de 21 anos de idade.

b) Executivo Estadual

O chefe do Executivo Estadual é o governador, eleito pelo povo de cada Estado (e do DF, onde se chama governador distrital) para um mandato de quatro anos, permitida uma reeleição subsequente.
Os assessores do governador são os secretários estaduais, que respondem por temas como saúde, educação, cultura etc., no âmbito do respectivo estado.

c) Executivo Municipal

O chefe do Executivo Municipal é o prefeito, que é eleito pelo povo de cada município. Seu mandato é de quatro anos e a possibilidade de um segundo turno durante a eleição depende do número de eleitores de cada município. Seus auxiliares são os secretários municipais. No Distrito Federal não existem prefeitos.










4.2.1. Síntese da estruturação do Executivo e do Legislativo no Brasil

Nível
Ente

Lei Maior
Chefe do Executivo
Formação do Legislativo
Federal
União
Constituição Federal
presidente
Câmara do deputados (513 deputados federais) e Senado Federal (81 senadores)
Estadual
Estados federados
Constituição Estadual
governador estadual

Assembleia Legislativa
(deputados estaduais)

Distrito Federal
Lei Orgânica
governador distrital

Câmara Legislativa (deputados distritais)

Municipal
Municípios
Lei Orgânica
prefeito
Câmara Municipal (vereadores)


4.3. Poder Judiciário

Ao Judiciário cumpre “judicar”, ou seja, julgar a lei. Isso significa que os juízes têm a função de determinar a aplicação das leis e decidir sobre conflitos.
O Judiciário não tem a importância política dos outros Poderes, mas constitui a principal garantia da efetivação das liberdades e dos direitos individuais e sociais.
No Brasil o princípio da “inafastabilidade da apreciação judiciária” está assegurado na CF/88 nos seguintes termos: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5º, XXXV).
O Judiciário no Brasil está estruturado conforme uma divisão racional das matérias a serem analisadas. São estes os seus organismos e suas respectivas competências:
·     Justiça do Trabalho: dissídios entre trabalhadores e empregados em decorrência da relação de trabalho;
·     Justiça Eleitoral: matérias referentes a eleições, partidos, perda de mandato e crimes eleitorais;
·     Justiça Militar da União:[2] crimes militares das Forças Armadas;
·     Justiça Militar Estadual:[3] crimes cometidos por bombeiros e policiais militares;
·     Justiça Comum Federal: causas em que a União for parte (impostos federais, licitações, etc.) ou for vítima de crime e ainda temas fundados em tratados internacionais;
·     Justiça Comum Estadual: competência residual, ou seja, todas as matérias não especificadas nas outras justiças (ex: crimes comuns, contratos, direito de família, sucessões, direito empresarial, danos materiais etc.); é a que tem mais competências.
A fim de que eventuais erros dos juízes possam ser corrigidos e também atender à natural inconformidade da parte vencida diante de julgamentos desfavoráveis, estabeleceu-se o princípio do duplo grau de jurisdição: o vencido tem, dentro de certos limites, a possibilidade de obter uma nova manifestação do Judiciário. Para que isso possa ser feito, é preciso que exista uma hierarquia de tribunais.
A seguir um sucinto organograma dos tribunais brasileiros:
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), criado em 2005, é o órgão do Poder Judiciário encarregado de controlar a atuação financeira e administrativa dos demais órgãos, além de supervisionar o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes.

5. Considerações finais

O governo é a soberania em ação. São distintos os órgãos de manifestação do poder de soberania e cada um exerce a totalidade do poder soberano dentre da sua esfera de atuação. “Cada ato de governo, manifestado por um dos três órgãos, representa uma manifestação completa do poder.”[4]
Kant comparou o Estado à Santíssima Trindade, pois trinos e unos ao mesmo tempo. Tal como os órgãos do corpo humano, os poderes do Estado mantém uma relação vital e nenhum deles representa, sozinho, a plenitude da vontade do Estado.
O adjetivo independente é, portanto, incompatível com a doutrina da divisão dos poderes. Os poderes só são independentes na medida em que funcionam separadamente. A divisão é formal e funcional, porém não substancial. Os poderes se integram e se complementam mutuamente com o objetivo de manifestar a soberania nacional.

Referências bibliográficas

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:  Saraiva, 1995.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Portal da Câmara dos Deputados. Disponível em: . Acessado em nov.2011.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 05 out. 1988.
MALUF, Sahid. Teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1995.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2004.



[1] Professor, escritor e advogado. Mestre em Direito Internacional pela USP.
[2] Os juízes militares e os Conselhos de Justiça exercem o primeiro grau de jurisdição. Como não existem “Tribunais Regionais Militares”, o segundo grau de jurisdição é exercido diretamente pelo STM.
[3] A primeira instância é constituída pelos juízes militares e pelos Conselhos de Justiça (um juiz togado e quatro oficiais); a segunda instância, nos estados de SP, RJ e MG, cumpre aos respectivos Tribunais de Justiça Militar, enquanto nos demais estados e Distrito Federal cabe aos TJs.
[4] MALUF, Sahid. Teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 207.