31 de agosto de 2006

A uma adúltera

Mais um Quevedo traduzido.

Repreende a uma adúltera por circunstância de seu pecado

Trad. Fábio Aristimunho

...Só em ti, Lésbia, se vê que foi perdido
o pejo do adultério feito ao léu,
pois que tão claramente e tão sem véu
por ti o bom costume é ofendido.

...Por Deus, por ti, por mim, por teu marido,
não corra tua infâmia todo o céu:
fecha a porta, cuida o povaréu,
que o pecado nasceu para escondido.

...Não te digo que deixes teus amigos,
mas sim que não convém sejam notados
pelos poucos que são teus inimigos.

...Saibas que teus vizinhos, ultrajados,
comentam que te agradam os perigos
dos teus pecados mais que teus pecados.


O original:

Reprehende a una adúltera la circunstancia de su pecado

Francisco de Quevedo

...Sólo en ti, Lesbia, vemos que ha perdido
el adulterio la vergüenza al cielo,
pues que tan claramente y tan sin velo
has los hidalgos huesos ofendido.

...Por Dios, por ti, por mí, por tu marido,
que no sepa tu infamia todo el suelo:
cierra la puerta, vive con recelo,
que el pecado nació para escondido.

...No digo yo que dejes tus amigos,
mas digo que no es bien que sean notados
de los pocos que son tus enemigos.

...Mira que tus vecinos, afrentados,
dicen que te deleitan los testigos
de tus pecados más que tus pecados.

30 de agosto de 2006

"Do mal que estou não vou sair"

A poesia medieval catalã lembra muito, não por acaso, a poesia provençal, com seu padrão de amor cortês e musicalidade. O poema a seguir é uma pequena pérola do período.


Do mal que estou...

Trad. Fábio Aristimunho

Do mal que estou não vou sair
......se não me olhar
com olhos tais que eu possa ouvir
......que não quer mais
que eu por você venha a partir.

E se partisse, então veria
......o amor tão forte
que eu lhe guardava, e choraria
......a triste morte
daquele a quem já não queria;

que o mal que estou não vou conter
......sem seu olhar
pousado em mim, a me dizer
......que não quer mais
que eu por você venha a morrer.


O original:

Del mal que pas...

Joan Roiç de Corella (1438-1497)

Del mal que pas no puc guarir
......si no em mirau
ab los ulls tals que puga dir
......que ja no us plau
que jo per vós haja a morir.

Si muir per vós, llavòs creureu
......l’amor que us port,
e no es pot fer que no ploreu
......la trista mort
d’aquell que ara no voleu;

que el mal que pas no em pot jaquir
......si no girau
los vostres ulls, que em vullen dir
......que já no us plau
que jo per vós haja a morir.

29 de agosto de 2006

A Roma sepultada em suas ruínas

Mais uma transversão, desta vez do castelhano para o português:

A Roma sepultada em suas ruínas

Trad. Fábio Aristimunho

...Procuras Roma em Roma, ó peregrino,
e achar em Roma a própria Roma falhas;
se agora são cadáver as muralhas,
é de si mesmo túmulo o Aventino.

...Jaz, onde antes reinava, o Palatino;
e, do tempo corroídas, as medalhas
mais parecem destroços de batalhas
de outras idades que brasão latino.

...Só o Tibre restou, cuja corrente,
se a regou cidade, hoje sepultura,
a chora em som funesto e comovente.

...Ó Roma, de teu esplendor e altura
ruiu o que era firme, e tão somente
o transitório permanece e dura.


O original:

A Roma sepultada en sus ruinas

Francisco de Quevedo

...Buscas en Roma a Roma, ¡oh, peregrino!,
y en Roma misma a Roma no la hallas;
cadáver son las que ostentó murallas,
y tumba de sí proprio el Aventino.

...Yace donde reinaba el Palatino;
y limadas del tiempo, las medallas
más se muestran destrozo a las batallas
de las edades que blasón latino.

...Sólo el Tibre quedó, cuya corriente,
si ciudad la regó, ya, sepoltura,
la llora con funesto son doliente.

...¡Oh, Roma!, en tu grandeza, en tu hermosura,
huyó lo que era firme, y solamente
lo fugitivo permanece y dura.


28 de agosto de 2006

Notícias do vácuo

Um poema:

NOTÍCIAS DO VÁCUO

Hoje os astrônomos decidiram que Plutão não é mais um planeta.
Dizem que Plutão é muito menor que a Terra e até mesmo menor que a Lua.
Bobagem.
Muitas vezes já me disse que o mês é bem maior que o meu salário,
mas não deixei de constelar contas e cadastros
e nem por isso os astros deixaram de ser astros.

.....Fábio Aristimunho

Fim de semana

Carpe diem

In vino veritas

24 de agosto de 2006

Transversão: Mar portugués

Fernando Pessoa, vertido ao castelhano. Ainda não consegui uma boa solução para o terceiro verso, que me incomoda. No último verso optei por reflejar em vez do neologismo espejar porque uma amiga mexicana disse que não entenderia o sentido de espejar se eu não explicasse. Então tá: reflejar.



MAR PORTUGUÉS

Trad. Fábio Aristimunho

Oh mar salado, ¡cuánto de tu sal
son lágrimas de Portugal!
Te cruzamos: cuántas madres lloraron,
cuántos hijos en vano oraron…
¡Cuántas novias se quedaron solteras,
oh mar, para que nuestro fueras!

¿Y valió? Vale todo que se empeña
si el alma no es pequeña.
Si uno traspasar quiere el Bojador
hay que traspasar su dolor.
Dios le dio el abismo y el riesgo al mar
– y al cielo le hizo reflejar.



O original:


MAR PORTUGUÊS

Fernando Pessoa

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

22 de agosto de 2006

A nuvem

Na seqüência, um poema infantil. Tenho uma pequena série de poesia infantil, que andava guardada esperando novos poemas, mas com o tempo perdi o interesse pelo assunto e a série estancou. Hoje não sei bem o que fazer com ela – só sei que fica uma sensação de assunto pendente.



A nuvem

Uma nuvem lá no céu
lembra um barco de papel;
uma nuvem lembra um homem
.......de chapéu
que chegou e que partiu.

Uma nuvem que corria
lembra à mãe que é meio-dia,
lembra a pressa pro almoço
.......da Maria,
lembra a vida de quem viu.

Lembra a casa, lembra o pão,
lembra os filhos que virão.
Uma nuvem lembra a vida
.......aqui do chão
que passou e ninguém viu.

Passa a nuvem, passa o vento,
passa o dia, passa lento...
E se deixa a vida passa
.......feito a nuvem:
ninguém lembra – ninguém viu.

.....Fábio Aristimunho

21 de agosto de 2006

Primavera dos Livros e seu contraponto

do correspondente, direto do Centro Cultural

Sim, teve Primavera dos Livros no fim de semana (e sim: o blog Medianeiro foi acompanhar de perto o que rolou, como não podia deixar de ser). A PL deste ano teve diversas atrações, de cinema a oficinas, de exposição a palestras. Mas o meu grande destaque afetivo vai mesmo para o Espaço Haroldo de Campos, um palquinho montado pela Casa das Rosas bem no meio evento, onde rolou leitura de poesia e de contos, declamação, entrevistas, intervenção do público e de tudo o mais um pouco. Palmas para a organização pela iniciativa.

Como divulguei semana passada, no sábado teve o sarau do pessoal do Projeto Identidade, com leituras de Ana Rüsche, Andréa Catrópa, Donny Correia, Eduardo Lacerda, Elisa Buzzo, Lilian Aquino, Renan Nuemberger, Victor Del Franco, Mônica Aquino e também Fábio Aristimunho, que chegou meio atrasado (pra variar) mas a tempo de pegar a rabeira. Pelo palquinho ainda passaram os poetas Ruy Proença, Fábio Weintraub, Pádua Fernandes, Virna Teixeira e Glauco Mattoso; Claudinei Vieira com o Desconcertos; os escritores convidados Daniel Galera, Marcelino Freire, Rogério Augusto e Andréa Del Fuego. Alto nível.

Mas ok, convenhamos: isso tudo era só um chamariz secundário. A grande razão de ser da Primavera dos Livros, como todo mundo sabe, são mesmo os livros com descontos, como manda o bom mercado. De minha parte, não achei os preços assim tão primaveris quanto em outros anos, se bem que não me poupei de uns mirréis. Em outras edições – bons tempos aqueles – eu chegava a comprometer parcela considerável do meu salário com livros; nesta Primavera, no entanto, vivi o meu inverno dos livros particular. Ninguém merece.

Confira nas fotos tudo o que este blogueiro testemunhou da Primavera dos Livros, no melhor estilo Caras.

Carpe diem e até a próxima.

Fotos da Primavera dos Livros - 1


Eduardo L., de costas


Fábio A., se achando


Ana R., Vanderley M. e Virna T.: A advogada, o editor e a neurologista


Pedro T., Vidal Bagathielasch e Fernando T.


campeão de vendas


me agüenta

Fotos da Primavera dos Livros - 2


Desconcertos com Vidal ao fundo


Fazemos o que fazemos de melhor


Espaço H. de Campos: panarômica


Ruy P. com Fábio W. ao fundo


com Marcelino F., Claudinei V. e Andréa D.F. - mas faz de conta que é pra Caras


Jaguar, jaguaríssimo

19 de agosto de 2006

Arte medianeira

A artista plástica que se diz ‘amadora’ (e os artistas não são todos amadores?) Patrícia Luciane de Carvalho, de Curitiba, pintou alguns quadros a partir de poemas do meu livro Medianeira. São 14 ao todo, se não me engano.

Ela inclusive me deu de presente um deles, inspirado na capa e no poema Inácio, e que já está devida e orgulhosamente pendurado em casa junto das minhas estantes. Dos demais ainda estou aguardando as fotos.

Pelo que me disse, a esta altura os quadros estão todos em mãos alheias e ela agora está aos poucos fotografando um por um para me mandar o registro. Espero que não demore muito!

Veja aí o bonito trabalho da Patrícia:



Inácio



Meridionais



Cacto


Para quem quiser dar uma alô diretamente para a artista (a quem reitero, agora publicamente, que me senti muitíssimo lisonjeado com a escolha e feliz pelo meu livro ter sido medianeiro para a sua criação):
plcarvalho@yahoo.com.br.

Recebendo mais fotos, postarei.

Carpe diem!

17 de agosto de 2006

Alguma transversão: A vaca cega

O poema La vaca cega, do catalão Joan Maragall, é um dos poemas mais densos que conheço. Datado do final do século XIX, é de uma tragicidade contida, muda, e ao mesmo tempo bastante lírica: foca uma questão humana (ou animalesca) e com isso atinge o sublime. Mesmo conciso – 23 versos, apenas –, consegue ser um dos maiores monumentos da língua catalã.

Existem traduções do poema para diversos idiomas. No português, parece que a mais conhecida é a do Ronald Polito. Eu arrisquei fazer também a minha pequena transversão, conforme abaixo, que espero que não faça feio.



A VACA CEGA

Trad. Fábio Aristimunho

Topando de cabeça em alguns tocos,
rumando maquinal em busca d’água,
lá vem a vaca solitária. É cega.
Com boa pontaria e uma pedrada,
o zagal lhe vazou um olho, e o outro
cobriu-lhe uma membrana: a vaca é cega.
Da fonte vem beber, como antes vinha,
mas não com a firmeza de outros tempos
nem com as companheiras: vem sozinha.
Suas colegas, por declives, morros,
no silêncio do prado e na ribeira,
balançam o chocalho, enquanto pastam
a relva fresca ao léu... Ela cairia.
Dá de cara no afiado bebedouro
e recua, afrontada; mas retorna,
baixa a cabeça na água e bebe, calma.
Bebe pouco, sem sede. Depois ergue
ao céu, enorme, sua córnea testa
num grande gesto trágico; então pisca
sobre as meninas mortas, e se volta,
órfã de luz embaixo do sol que arde,
palmilhando um caminho inesquecível,
brandindo lânguida uma cauda longa.



O original:

LA VACA CEGA

Joan Maragall

Topant de cap en una i altra soca,
avançant d’esma pel camí de l’aigua,
se’n ve la vaca tota sola. És cega.
D’un cop de roc llançat amb massa traça,
el vailet va buidar-li un ull, i en l’altre
se li ha posat un tel: la vaca és cega.
Ve a abeurar-se a la font com ans solia,
mes no amb el ferm posat d’altres vegades
ni amb ses companyes, no: ve tota sola.
Ses companyes, pels cingles, per les comes,
pel silenci dels prats i en la ribera,
fan dringar l’esquellot, mentre pasturen
l’herba fresca a l’atzar... Ella cauria.
Topa de morro en l’esmolada pica
i recula afrontada; però torna
i abaixa el cap a l’aigua i beu calmosa.
Beu poc, sens gaire set. Després aixeca
al cel, enorme, l’embanyada testa
amb un gran gesto tràgic; parpelleja
damunt les mortes nines, i se’n torna
orfe de llum, sota del sol que crema,
vacil·lant pels camins inoblidables,
brandant llànguidament la llarga cua.



in CAPDEVILA, Josep Ma. (tria). Les cent millors poesies líriques de la llengua catalana. 3. ed. Barcelona: Barcino, 1936. p. 151.

16 de agosto de 2006

Primavera dos Livros

Neste fim de semana acontece a quarta edição da Primavera dos Livros, em São Paulo. Será no Centro Cultural São Paulo, onde várias editoras pequenas e médias venderão os livros do seu catálogo com descontos de até 40%.

Paralelamente haverá uma programação bem variada de eventos, tais como debate com escritores, lançamentos de livros, oficinas de leitura para crianças, mostra de cinema e leitura de poesia. A programação completa pode ser consultada no site do evento.

Eu estarei em um dos saraus, junto com outros poetas amigos meus que fazem parte do Projeto Identidade, como se pode ver no panfleto ao lado.

Nos vemos lá!

*

PRIMAVERA DOS LIVROS
Centro Cultural São Paulo
Rua Vergueiro, 1000 - São Paulo-SP
17 a 20/8, das 10h às 21h
www.libre.org.br/primavera

15 de agosto de 2006

O Evangelho segundo a Praça Roosevelt

Para manter um hábito saudável, segue um poema revisitado. Esse saiu, em uma versão anterior, na revista FNX n. xix. Fazia originalmente parte da poesia alheia, ou seja, era um poema desentranhado na íntegra de um texto de autoria de um terceiro – no caso, um artigo de jornal. Um tempo depois de publicado, relendo-o, passei a achar que o poema podia ser mais expressivo sem as limitações alheias. Foi isso que me levou a, não sem alguma ponderação, romper de vez com a escola alienista e republicar o poema por aqui, já devidamente adulterado, conforme segue. (Os versos 1, 4, 5, 8 e 9 deveriam ser recuados para a direita, mas o blog não o permitiu fazer.*)


O EVANGELHO SEGUNDO A PRAÇA ROOSEVELT

......................extraído de um artigo de jornal

.....o que restou, em mim, daquela praça,
além dessas pessoas que se cruzam, terríveis, no contrapasso,
com sua urgência de mundo, de automóveis, de mais metros adiante,
.....são esses santos e similares
.....que nos tentam extrair a ausência,
e uma certa pedagogia de mundo de quem vira do avesso
os próprios bolsos diante de mais aptos. pois são, acaso,
.....os que têm distanciamento que têm a dizer?
.....seus monólogos inauditos? – não:
feito deus ouvido a decibéis, são os moisés da praça roosevelt.

. ....Fábio Aristimunho




(*) Pós-escrito: já aprendi como se faz e incluí o espaçamento.

Fotos de Paraty - 1

SÁBADO 12/8

recém-chegados


marcando presença...


"inveja do pênis" (Freud explica)


Altivo FM, no lançamento da Bagatelas


brinde da Bagatyelaxxx

almoço-jantar


coquetel da Off-FLIP


sarau maloqueiristas/Cooperifa

14 de agosto de 2006

Fotos de Paraty - 2

DOMINGO 13/8

retrato do artista quando a bordo


- Very good, FLIPer!


LOST - los tímidos


na vida, como na arte, é preciso ter estilo


tentativa de motim


Aperecem nas fotos, não necessariamente nesta ordem: Ana R., Urso, Altivo, Manu, Fernando T., Fernanda, Ana P., Marcela (irmã da Ana P.), Victor Del Franco, Virna, Edward, Tostes, Luana, Flávio e Fábio Aristimunho.

Estive em Paraty

Estive, mas não para a festa de gala, como testemunham as fotos. Juntamos uma galerinha e fomos fazer a nossa própria festa no quintal alheio. E Paraty, nesta época, é um imenso FLIPerama (perdoem o trocadilho fácil): você roda por toda parte, bate aqui e ali, mas sempre acaba caindo num buraco.

No nosso caso, fomos cair de bicão no lançamento da revista Bagatelas (Bagatyelaxx). Os cariocas arrumaram patrocínio de - pasme - nada menos que uma cachaçaria, levando nessa brincadeira um estoque de charutos, canequinhas personalizadas e, vejam só, um fornecimento ilimitado de cachaça para o lançamento. O evento teve, acredite se quiser, até literatura! ("A reviXta é de graça maiX o autógrafo é 50 reaiX...") Ainda bem que alguém teve sobriedade suficiente para tirar a gente dali antes que algum de nós começasse a declamar o Soneto de Fidelidade para o barril de cachaça.

Mais tarde fomos parar numa palestra da Off-FLIP, que até que teria sido produtiva se não tivesse que escutar alguns absurdos pseudomercadológicos: agora sei que se eu não tiver que gastar com remédios este ano terei de gastar o equivalente em livros, e se não o fizer nenhuma agente literária deslumbrada vai se interessar por mim, e ainda que se interessasse eu teria que repensar o uso que faço das minhas vírgulas, parênteses e travessões... Muito esclarecedor, como se pode ver.

O que salvou esse evento foi a chance única de saldar o nosso camarada Marcelino-Jabuti-Freire com um coro de "jaburu! jaburu! jaburu!", lembrando o prêmio alternativo que ele mesmo criou, diante da platéia atônita. Ele, claro, levou na boa, e ainda tirou um barato com a gente, dizendo que achou que o pessoal da Flap tinha errado de endereço.

No sábado ainda fomos para um sarau em praça aberta organizado pelos maloqueiristas e o pessoal da Cooperifa, que fizeram sua própria FLIP - Festa Literária Periférica. Os caras são profissionais, não deixam nenhum vácuo entre as declamações, como calha acontecer nesses recitais que dependem da participação do público.

E o domingo, por fim, reservamos para o merecido descanso literário. Afinal, também é preciso viver a poesia.

No balanço geral, apesar de não termos conseguido vender um livrinho sequer, como nos nossos melhores sonhos, Paraty valeu a pena. Posso não ter visto o Jô, o Jabor ou o Caetano, mas foi muito bom rever algumas figurinhas que estão cada vez mais fáceis no meu álbum, como se pode ver nas fotos.

Carpe diem e até a próxima.

11 de agosto de 2006

Poesia sem fundo

A série abaixo foi feita logo depois dos dois diazinhos que passei no Rio. Está engavetada por enquanto, mas ainda pretendo voltar a ela - e também ao Rio.


POESIA SEM FUNDO

1.
o motorista do ônibus,
mãos grandes e firmes e fortes,
fala somente o indispensável
mas engata uma segunda-feira
como ninguém diria.

2.
na mesa um souvenir:
“lembrança do rio”.
e o dia quente lá fora
invariavelmente mais frio
que o ar-condicionado
aqui de dentro.

3.
a moça da calçada
ela passa tão doce
que chega a ser irritante.
não houvesse tantas passantes
o dia perdia o sal.

4.
enquanto há passarinhos
cantando,
meus cheques passarão,
voando.
se eu tivesse o talonário dos seus olhos
não precisava de tantas desculpas.

5.
o caixa eletrônico
engoliu minha identidade.
e eu que precisava
de um isqueiro novo,
um sonrisal
e uma boa foda.

10 de agosto de 2006

Um pequeno (e importante) esclarecimento

De início, queria esclarecer que este blog foi criado à minha revelia e sem o meu consentimento. Até onde eu sei, os responsáveis são Sr. G., Sr. V., Sr. E.L. e - como não poderia deixar de ser - Srta. A.R. Eu bem que processaria todos eles por difamação (onde já se viu publicar uma paródia horrenda como se fosse sério?!), mas parece que eles já levantaram os argumentos jurídicos da defesa. Nesse caso, c'est la vie.

O fato é que nunca quis ter um blog pois já tenho atividades improdutivas demais que preenchem até o meu tempo em tese produtivo. Acho que até manifestei isso na FLAP/Rio, quando falei de blogs, poesia torpedista, poesia alheia e outros modismos: a primeira coisa que perguntam hoje em dia, quando descobrem que você escreve, não é mais qual o seu livro, mas sim qual o seu blog.

Sempre resisti a ter um blog e já me achava o último dos samaritanos. Mas se você não cria um blog os amigos criam um pra você! Por isso estou assumindo a partir de agora este blog, sem muita noção ou idéia do que vou passar a postar ou mesmo como se faz isso. As postagens anteriores à última não são minhas, mas vou deixar elas por aqui mesmo, só com umas pequenas atualizações.

Era isso. Carpe diem e até a próxima.

Miréia - alguma transversão

Comecei a fazer uma transversão de Mirèio, de Frédéric Mistral. O interesse surgiu depois de uns e-mails com amigos, quando descobri que sabia quase nada de Mistral. Fui olhar o meu Mirèio que comprei sem nunca abrir e na hora já tomei gosto.

O texto original é em provençal e o autor usa uma escrita muito própria, que passou a ser chamada "grafia mistralesa", cheia de regionalismos e galicismos e que é bastante criticada por estudiosos do provençal. Por conta dessa grafia o texto acaba um pouco obscuro, algumas passagens são realmente difíceis de entender sem o apoio da versão francesa.

No esforço de ler o texto, acabei rabiscando uma tradução das primeiras estrofes. Nunca estudei provençal, mas saber um pouco de catalão e francês ajuda bastante nessas horas, sem falar de alguma intuição.

Segue, por ora, o resultado dessa minha pequena transversão. Procurei preservar o mais possível o ritmo e o aspecto formal. Quem sabe um dia eu não traduzo os 700 versos restantes?


***


Miréia (excerto)
trad. Fábio Aristimunho

........Canto uma moça de Provença.
........Nos amores de sua inocência,
desde a Crau até o mar, pelos campos de trigo,
........humilde seguidor de Homero,
........eu quero segui-la. Como era
........não mais que uma moça da terra,
deu que só na Crau fosse um nome conhecido.

........Ainda que seu rosto brilhasse
........só por ser jovem, e não lhe ornasse
sequer diadema de ouro ou finíssimo manto,
........quero que em glória seja alçada
........como uma rainha, e adulada
........por nossa língua desdenhada,
pois cantamos por vós, ó pastores dos campos!

........Tu, Senhor Deus da minha pátria,
........tu que nasceste entre os rupestres,
dá-me alento e incendeia estas minhas palavras!
........Tu sabes: em meio às verduras,
........nos primeiros raios da aurora,
........quando a figueira está madura,
vem o homem feito lobo espoliar toda a árvore.

........Mas sobre a árvore que ele esbulha
........tu preservas sempre algum galho
aonde não alcança a mão ruinosa do homem,
........belo rebento prematuro
........e oloroso e intocado e puro,
........belo madalênico fruto
aonde o pássaro do ar vem saciar sua fome.

........Eu bem o vejo, esse graveto,
........e seu frescor me deixa inquieto!
Eu vejo, em pleno céu, e o vento a balançá-los,
........seu ramo e seu fruto imortal...
........Bom Deus, Deus amigo, nas asas
........de nossa língua provençal,
permita que eu alcance o alto galho dos pássaros!

...


O original:

Mirèio
Frédéric Mistral

........Cante uno chato de Prouvènço.
........Dins lis amour de sa jouvènço,
A travès de la Crau, vers la mar, dins li blad,
........Umble escoulan dóu grand Oumèro,
........Iéu la vole segui. Coume èro
........Rèn qu’uno chato de la terro,
En foro de la Crau se n’es gaire parla.

........Emai soun front noun lusiguèsse
........Que de jouinesso; emai n’aguèsse
Ni diadèmo d’or ni mantèu de Damas,
........Vole qu’en glòri fugue aussado
........Coume uno rèino, e caressado
........Pèr nosto lengo mespresado,
Car cantan que pèr vautre, o pastre e gènt di mas!

........Tu, Segnour Diéu de ma patrìo,
........Que nasquères dins la pastriho,
Enfioco mi paraulo e douno-me d’alen!
........Lou sabes: entre la verduro
........Au soulèu em’ i bagnaduro
........Quand li figo se fan maduro,
Vèn l’ome aloubati desfrucha l’aubre en plen.

........Mai sus l’aubre qu’éu espalanco,
........Tu toujour quihes quauco branco
Ounte l’ome abrama noun posque aussa la man,
........Bello jitello proumierenco
........E redoulènto e vierginenco,
........Bello frucho madalenenco
Ounte l’aucèu de l’èr se vèn leva la fam.

........Iéu la vese, aquelo branqueto,
........E sa frescour me fai lingueto!
Iéu vese, i ventoulet, boulega dins lou cèu
........Sa ramo e sa frucho inmourtalo...
........Bèu Diéu, Diéu ami, sus lis alo
........De nosto lengo prouvençalo,
Fai que posque avera la branco dis aucèu!

...

8 de agosto de 2006

Mircéia: paródia de Mistral

Mircéia

"Cante uno chato de Prouvènço"
F. Mistral

........Canto uma chata de província.
........Sabido de suas carícias,
que passeiam do queixo até os pés, por lazer,
........eu, que não sou bobo nem nada,
........quero comê-la. Não esperava
........que apesar da fama de chata
por querer dar-lhe um crau fosse me arrepender.

........Embora seja arrumadinha,
........meio ajeitada (e sem calcinha),
daquelas que se paga uns três vinténs o par,
........bem tento seguir escutando,
........semi-atento, mas mesmo quando
........nossas línguas vão enroscando
a sua língua, hostil, só faz tagarelar!

........Um dia cantei uma chata
........de província, meio ajeitada
(e sem calcinha) quando ouvi seu consentir.
........Mas foi por querer dar-lhe um crau
........e manter minha fama de mau
........que, hoje, vou ouvir, no hospital,
mais um discurso seu - sobre a arte de parir...

5

BOCA & PLÁGIO

Barangueiro
(até) de idéias:
não fale perto
senão eu cato.



ESPERA SEMAFÓRICA

O que poderia ter sido:
– Eu não pedi pra nascer
– Isso é com a sua mãe,
...por mim ela tirava
Mas o atraso era falso.



O CACTO

São mesquinhos os cactos.
Aptos ante o inóspito,
optam o fluxo (não ínfimo)
reter no oco. Aptos, mas
míseros são os cactos
– com espinho abstêm-se os céticos.

Cético: ser como o cacto:
signo ereto de acúleos.
Ressentir do silêncio
das folhas, conformar-se
à demência dos galhos.
Ser convicto sem fruto.



MERIDIONAIS

A cartografia do seu corpo,
em que debruço e em que me perco,
tem os traços de uma obra cubista:
os seus pés – chucros – são gaúchos,
de uma nudez que antecipa a sua própria;
o joelho afobado é catarina;
do Paraná vêm as suas coxas
– generosas, roceiras, coloniais;
incansável o seu sexo paulista,
que freqüento com um quê de profissão;
a bunda, essa é carioca, e opostas
ao planalto central de sua barriga
as costas pantaneiras,
em que me inundo, turista. Mas
(como bom sulista) pouco sei do seu norte,
além dos seios inquietos,
quase nada mineiros.



DA ARTE DE AMAR

a noite – virá-la
o álcool – virá-lo
a vida – virar-se
você – revirar-te


Poemas retirados de Medianeira, Edições Quinze & Trinta, 2005.

Tríptico

para luciana rosa



1. O pão
ao chão.
Faca untada
na mão,
sem o pão,
inútil.
Mão, faca:
comunhão
inconsútil,
estática.
Pão:
o chão
deglute-o,
que nada
é em vão.




2. Antenas:
precipícios.
Faróis
alexandrinos
das ondas
radiofônicas.
Afronta
ao céu,
não à babel
de vícios.
Serão tragadas
pelas micro-
ondas
faraônicas
do silício.



3. Gira a hélice
no auge seu
(eu?)
o helicóptero
que, sem ela,
não confronta
o chão nem
chega ao céu.
Ateu da
academia,
a fazer que
deus morreu,
também tenho
minha hélice:
eu - eu - eu

(Veja tradução para o catalão do Tríptico feita por
Joan Navarro)

sobre Medianeira



por Alfredo Fressia, poeta e ensaísta


Antes da leitura do presente Medianeira, primeiro poemário de Fábio Aristimunho Vargas, eu conhecia pouco o autor. Sabia que ele era poeta ―tinha lido uns textos seus na revista Phoenix (“uma publicação da Academia de Letras da Faculdade de Direito de São Paulo”, releio hoje). Sabia também que vivia de seu trabalho como advogado e que tinha estudado letras na USP. Por mera curiosidade perguntara-lhe o ano de nascimento. Pois nasceu em 1977, “em Ponta Porã, Mato Grosso do Sul”, disse-me, mas se criou em Foz do Iguaçu, “perto de uma cidadezinha chamada Medianeira”. Fiquei pensando no fato de ele ter crescido em Foz, ao lado daquela selva que meu patrício Horacio Quiroga havia ousado transfigurar em palavras, tão perto dessas cataratas gigantes e de beleza dócil, nesse ângulo do mapa paranaense que ainda é Brasil, já é Argentina e é em muito o Paraguai, onde o povo fala o guarani junto às línguas ibéricas. Eu precisava ler esse poeta.

Sabia mais duas ou três coisas de Fábio. Conhecia essa espécie de low profile com que ele veste a sua pessoa, a sua delicadeza na fala e no silêncio, certa doçura que vem, creio, da convivência com a imensidão vegetal. Quanto a “Medianeira”, o nome deste poemário, o autor me explicara uma curiosidade. Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto iniciaram (ou quase) suas publicações com livros que designavam cidades próximas de seus lugares de origem. De fato, “Brejo das Almas” e “Pedra do Sono” são cidadezinhas, mineira uma, pernambucana a outra, antes de terem se tornado respectivos e esplêndidos nomes de livro de cada um desses poetas. Por fidelidade literária, quem sabe por superstição, mas também pelo calculado acaso das obras de arte, Fábio apelou ao mesmo recurso neste livro de estréia.

Depois da leitura de Medianeira o leitor não sabe muitas mais coisas sobre a pessoa do autor, mas toma em compensação uma refinada, definitiva lição de poesia. Porque o autor não fez em absoluto um diário íntimo. A “paranidade”, por exemplo, que poderia surgir desse passado na selva-urbana de Foz, por sua vez instalada na beira da selva-selva, quase não deixa registro neste livro. Sem dúvida, explica em parte um poema como “A terra, reciclada” mas ele não se torna uma real menção autobiográfica. A própria epígrafe do livro, tirada de outro poeta paranaense, também não convida às leituras biográficas. Assinala antes uma família poética, que aliás nada tem de provinciano, e a partir da qual Fábio escreve.

O poeta se nega à escrita confessional, de registro privado e identitário. Exibe mestria numa outra arte, a da transfiguração do mundo em palavras, a poesia como mediação para o conhecimento. A vida individual pode ser um relato desinteressante, ou repetido em quase todos os homens (sub specie aeternitatis, diriam os latinos, e Fábio sabe que a própria palavra “identidade” se forma a partir de idem, a mesma coisa, e iterum, de novo, outra vez). Para ele, a função da poesia é outra, é ser justamente “Medianeira”, isto é, “mediadora, intermediária, intercessora”, para seguir a ordem de acepções recebidas nos dicionários.

Como nos produtos da modernidade na qual Fábio escreve e se inscreve, a poesia deve “mediar”, transfigurar o material bruto da vida em arte. Por isso não importa aqui o grau de “originalidade” pessoal, romântica. Fábio insiste em ser um homem a mais na multidão (isso ele pensa –não quem o conhece), e, pior, por ela esmagado. É porque a transfiguração-mediação poética se realiza a partir de todos os materiais, e principalmente dos mais simples, dos menos prestigiosos ―como acontece nos mencionados Drummond ou Melo Neto, como em Paulo Leminski, como no sérvio Vasko Popa, como em toda a tradição de que Fábio se orgulha como de sua verdadeira família.

Para acabar ―que é inútil e pleonástico ser medianeiro da Medianeira― destacarei nesta poesia duas virtudes infreqüentes. A primeira é a capacidade que ela exibe de solidarizar o leitor. Repare-se que assim como em “Síndrome de Estocolmo”, “um poema vai de refém a cúmplice”, somos na prática os leitores os que terminamos totalmente cúmplices do discurso que Fábio arquiteta para nós, a legião dos seduzidos. A segunda das muitas virtudes desta poesia reside no trâmite retórico pelo qual Fábio finge não se levar a sério. Lembre o leitor que o humor em poesia é bom quando tem algo a desvendar, e do discurso deste livro não se sai igual a como se entrou.

É muito? Talvez, mas é o que se espera do livro de estréia de um poeta.