18 de agosto de 2013

A dialética centralização vs. descentralização na organização dos Estados


Fábio Aristimunho Vargas

Os Estados conformam sua organização jurídica e política segundo suas características históricas e culturais. Os modelos mais frequentes de caracterização da organização política de um Estado são os seguintes: forma de Estado, forma de governo, sistema de governo e regime político. A dialética entre centralização e descentralização do poder político constitui o cerne desses modelos históricos de organização do Estado.
O movimento de centralização do poder político remonta à Idade Média, quando a burguesia se aliou ao rei numa convergência histórica de interesses. Até então o rei era considerado pouco mais que um senhor feudal mais graduado, a quem os demais senhores feudais deviam vassalagem, mas ao qual não se submetiam politicamente. Nesse contexto, o poder político se encontrava pulverizado entre os nobres locais, que exerciam plenamente sua autoridade nas circunscrições que lhes coubessem. Organizavam exércitos, promoviam guerras, cobravam impostos, cunhavam moedas, criavam as próprias leis. O Estado era então uma ficção jurídica, confundindo-se com o direito de propriedade feudal hereditária, podendo eventualmente ser repartido entre os herdeiros como se fosse uma herança qualquer, perpetuando o sistema de vassalagem.
Com a evolução das relações comerciais e a retomada da vida urbana, a partir da Baixa Idade Média, tornou-se cada vez mais necessário centralizar o poder em torno do monarca. A lei do mais forte, uma constante das Relações Internacionais, que muitas semelhanças guardava com o estado de natureza hobbesiano já naquele período, fazia com que tivessem maior sucesso e predominassem sobre os rivais os Estados mais bem organizados. Para atingir o objetivo de constituir-se em um Estado forte era imperativo ao rei concentrar em torno de si os poderes até então de titularidade da nobreza feudal. Nesse processo de assalto à nobreza o rei ganhou um aliado, a burguesia, classe ascendente a quem interessava um Estado forte que lhe assegurasse os meios para bem desenvolver suas atividades econômicas. Um Estado bem organizado é capaz de proporcionar um conjunto de normas estáveis, uma moeda única para o Estado e forças armadas organizadas para defender o país externamente e manter a ordem interna, tudo de encontro com os interesses da burguesia, que por sua vez abastecia os cofres reais com os impostos gerados com sua atividade.
Portugal foi o pioneiro desse processo, o primeiro Estado-nação centralizado a emergir da profunda descentralização política característica da Idade Média. Independente de Castela desde 1143, independência esta consolidada com a Batalha de Aljubarrota em 1385, a neutralidade de Portugal nos conflitos europeus permitiu que o país se fixasse em seus problemas internos, permitindo que o poder monárquico se centralizasse desde muito cedo. Em outros lugares, como a França, os reis ainda rivalizariam por longo tempo com a nobreza. A centralização prematura de Portugal é inclusive uma das causas de seu pioneirismo também nas grandes navegações, proporcionadas por um Estado politicamente organizado e uma burguesia fortalecida.
Mais tarde, com a Paz de Vestfália, em 1648, o Estado ganhou um componente a mais a intensificar a centralização do poder político. A soberania passou a ser considerada um elemento fundamental e uma prerrogativa inalienável dos Estados, o que na prática implicava que os monarcas, que nessa altura já haviam reduzido significativamente a concorrência interna por parte dos nobres, não teriam mais poderes externos a concorrer com sua autoridade dentro do território por ele governado. O rei passa a ser incontestavelmente a maior autoridade de um Estado.
O processo de centralização do poder em torno da figura do rei perduraria ainda por longo tempo, desembocando em um fenômeno extremo de supremacia do poder monárquico, conhecido como Absolutismo. Quando Luís XIV atraiu para a corte toda a nobreza francesa, cativada com promessas de uma vida fácil e faustosa, o rei não tinha em mente senão alienar os nobres e inadvertidamente extrair-lhes o poder local que ainda lhes restava. Essa atração dos nobres franceses para a corte parisiense é uma metáfora da força centrípeta exercida pela centralização do poder, ou seja, ilustra com perfeição o movimento que os elementos periféricos – os nobres e seu poder – realizam em direção ao centro, representado pelo monarca.
Esse extremo de centralização do poder monárquico, se por um lado benéfico para a unidade do Estado, era por outro lado extremamente desfavorável para as identidades regionais. Um estado centralizador ignora as assimetrias regionais, tendendo a aplainar, de cima para baixo, todas as diferenças. Foi o que ocorreu na França, em que a Langue d’oïl, predominante na região do centro político, em Paris, atropelou a Langue d’oc e a cultura a ela associada, em toda a metade meridional do país.
Da Revolução Francesa emerge um tipo de Estado tão ou mais centralizador que o existente durante a época absolutista. A fundamentação ora racional do poder político, no pressuposto de que “todo poder emana do povo e em seu nome é exercido”, não contemplava a autonomia de povos com culturas diferentes daquela predominante no Estado. Ilustrativo disso foi a oficialização de uma única língua nacional na França, em 1795, em detrimento de línguas regionais como o catalão, o basco, o bretão e o occitano.
A partir do Congresso de Viena, em 1815, começa-se a vislumbrar certo movimento de reivindicação por maior autonomia regional no interior dos Estados. Esse contexto coincide com o despertar dos movimentos nacionalistas, quando os povos tomam consciência de si próprios e da unidade que constituem. A segunda metade do séc. XIX assiste ao despertar de nacionalidades há muito adormecidas, que passaram a afirmar-se como cultura e a reivindicar alguma representação política no âmbito do Estado. Não por acaso é nesse período que renascem literaturas até então decadentes, a exemplo das literaturas catalã, basca, provençal e finlandesa.
Com o Tratado de Versalhes, que encerrou oficialmente a Primeira Guerra Mundial, em 1919, consolidou-se e disseminou-se o princípio da autodeterminação dos povos, segundo o qual cada povo tem o direito de se autogovernar e conduzir livremente o próprio destino. Buscando atender a esse imperativo, os Estados aceleraram o processo de descentralização do poder político, algo que vinha já tomando força desde meados do séc. XIX, quando se desenvolveram os primeiros movimentos de afirmação das nacionalidades e tomou forma o constitucionalismo, movimento político-social que exigia a adoção de uma Carta Magna que assegurasse os direitos civis e políticos dos cidadãos e organizasse o Estado e seus poderes.
Na atualidade, é cada vez mais evidente que certo grau de descentralização é imprescindível para se viabilizar a administração de um território vasto. Quanto maior o território de um Estado, maior será a necessidade de descentralização política e administrativa. Não é por outro motivo que oito dos dez países de maior extensão territorial adotam a forma federal de Estado, que é um dos modelos mais descentralizadores da atualidade. Esses Estados federais são, por ordem de tamanho, Rússia, Canadá, Estados Unidos da América, Brasil, Austrália, Índia e Argentina. Já a China, o quarto país em extensão territorial e o primeiro em população, adota o modelo unitário regional, forma de Estado que atende às necessidades práticas de descentralização administrativa do país sem deixar de atender aos interesses de centralização política por parte de seu governo socialista de partido único.
De igual maneira, a descentralização vai ao encontro dos interesses de sociedades caracterizadas por profundas divisões culturais. Quanto mais dividida a sociedade, maior a necessidade de se conceder autonomia às diferentes identidades que a integram. Atender aos interesses de autonomia das diferentes identidades é uma maneira de se assegurar a própria unidade do Estado e sua integridade territorial.
Foi adotando modelos descentralizados que certos Estados multiculturais conseguiram manter-se íntegros e viáveis. É o caso da Suíça, país cujas pequenas dimensões territoriais contrastam com suas profundas divisões culturais, com destaque para a coexistência de quatro línguas oficiais: alemão, francês, italiano e romanche. A Suíça se viabilizou como Estado multicultural graças ao modelo descentralizador desde cedo implantado, em que se garantia grande autonomia às entidades subnacionais, os cantões. Apesar do nome oficial, Confederação Suíça, o país é na verdade uma federação, forma de Estado adotada desde 1848.
Por outro lado, governos autoritários tendem a implantar modelos centralizadores de Estado, especialmente se dependerem da força para perpetuar-se no poder ou para assegurar, artificialmente, a unidade e integridade territorial do Estado. A Espanha franquista, que emergiu da Guerra Civil Espanhola em 1939, adotava um modelo altamente centralizador de Estado, que atropelava os anseios por maior autonomia das diferentes nacionalidades – em sentido sociológico, não jurídico – que integram o país. O pressuposto da centralização era a necessidade de manter a integridade territorial do Estado, abafando os movimentos separatistas. Com a Constituição Espanhola de 1978 adotou-se um modelo totalmente oposto, porém com o mesmo objetivo, desta vez se atribuindo grande autonomia às entidades subnacionais, em um modelo conhecido como Estado autonômico.