Honduras, a Uniban da América Latina
Os
paralelos entre a deposição de um presidente e o caso do vestido rosa
O
golpe de Estado em Honduras, que em junho último depôs o governo
democraticamente eleito do país, tem gerado um amplo movimento de repúdio por
parte da comunidade internacional. O governo brasileiro tem especial interesse
no assunto, não somente por se tratar de um vizinho latino-americano, mas
sobretudo por ter-se surpreendido no meio do imbróglio quando a embaixada
brasileira no país passou a servir de refúgio ao presidente deposto. Enquanto
isso, no Brasil, uma estudante foi acossada por uma turba moralista, dentro de
uma universidade, e poucos dias depois sumariamente expulsa da instituição, em
virtude de ter trajado um vestido rosa considerado excessivamente curto para os
padrões locais. Esses dois casos, que à primeira vista nada têm em comum além
do fato de dividirem as páginas dos jornais e dos sites de notícias
brasileiros nos últimos tempos, na verdade guardam intrigantes e reveladoras
similaridades entre si.
Manuel
Zelaya, o presidente democraticamente eleito de Honduras, vinha implementando
medidas com vistas a organizar uma consulta popular por meio da qual o povo
hondurenho decidiria se seria votada, em pleito simultâneo às eleições
agendadas para novembro de 2009, a convocação de uma Assembleia Constituinte no
país. Ocorre que essa consulta popular fora planejada à revelia do Legislativo
e contrariando prévia decisão do Judiciário. Em 28 de junho de 2009 Zelaya foi
preso e, ato contínuo, conduzido por militares até o aeroporto, onde foi
embarcado à força em um avião com destino a San José, na Costa Rica. Alguns
meses depois Zelaya retornou às escondidas ao país, refugiando-se na embaixada
do Brasil em Tegucigalpa, de onde pretende negociar com os golpistas sua
recondução ao poder.
Geisy
Arruda, estudante de turismo na Universidade Bandeirante de São Paulo – Uniban,
em São Bernardo do Campo, foi hostilizada e xingada (“puta, puta, puta!”) por
uma turba formada por centenas de estudantes seus colegas de universidade. O
motivo da hostilidade, ocorrida em 22 de outubro último, teria sido a decisão da
estudante de frequentar as aulas trajando um vestido rosa considerado demasiado
curto para os padrões do lugar. A estudante, então vestindo um jaleco por sobre
a indumentária, precisou ser conduzida por policiais militares para poder
deixar o local, sob os xingamentos dos presentes. Todos esses fatos foram
gravados em câmeras de celulares e amplamente difundidos pela internet. No dia
7 de novembro seguinte, a universidade publicou em diversos jornais um anúncio
pago por meio do qual noticiava, surpreendentemente, a expulsão da estudante em
virtude de seus “trajes inadequados” e “postura incompatível com o ambiente da
universidade”.
O
primeiro paralelo que podemos traçar entre os dois casos se refere ao
comportamento das, assim consideradas, vítimas. Zelaya vinha desrespeitando a
legislação do país e confrontando os demais Poderes da República, ao atropelar
as atribuições constitucionais do Legislativo e ignorar repetidas decisões do
Judiciário. Além disso, Zelaya é acusado de pretender implantar no país um
regime autoritário, de estilo bolivariano, sendo que a pretexto da Assembleia
Constituinte não visava senão a perpetuar-se no poder, sob inspiração de Hugo
Chaves, presidente da Venezuela, de quem Zelaya é publicamente aliado. De sua
parte, Geisy Arruda claramente desrespeitou certas regras de etiqueta, ou mesmo
éticas, ao escolher um vestido que em princípio não se adapta ao ambiente
acadêmico de uma universidade e exibir uma “atitude provocativa”, ainda que se
considere que essas regras configuram normas não escritas, visto que a Uniban
não possui um regramento sobre o vestuário dos estudantes, e por isso mesmo
difíceis de serem enquadradas a um caso concreto.
Tanto
Manuel Zelaya quanto Geisy Arruda tiveram um comportamento reprovável. Em um
caso houve desrespeito a normas fundamentais relacionadas ao funcionamento do
Estado, no outro houve desrespeito a regras éticas e de etiqueta. Guardadas as
devidas proporções, são ambos comportamentos passíveis de punição nos foros
adequados. Isso no entanto não justifica a reação exacerbada de seus
opositores, como observado nos dois casos. Manuel Zelaya foi preso,
sumariamente deposto e expulso do país por militares. Geisy Arruda foi xingada
e humilhada, escoltada por policiais militares para fora da Uniban e mais tarde
sumariamente expulsa da instituição. Em nenhum dos casos foi observado o
direito à ampla defesa e ao devido processo legal dos acusados. Dessa maneira
se pode ver como uma reação desmesurada – por parte dos golpistas, em Honduras,
por parte da turba moralista, na Uniban – pode ofuscar e mesmo minimizar o
comportamento, desde o início reprovável, de suas vítimas.
A
reação dos opositores de Manuel Zelaya e de Geisy Arruda pode ser dividida cada
qual em dois momentos. Contra Zelaya houve primeiro a deposição sumária, sem
ampla defesa, e em seguida a expulsão do país. Geisy Arruda foi alvo de uma
sessão pública de xingamentos, seguida de sua expulsão sumária realizada pelos
dirigentes da instituição, sem que lhe fosse permitida a ampla defesa. A
deposição de Zelaya até poderia ter transcorrido dentro da legalidade, mesmo
com sua prisão preventiva, nos termos da Constituição do país, assim como a
expulsão de Geisy Arruda do quadro discente da Uniban também poderia ter sido
realizada de maneira regular, em conformidade com o regulamento da instituição.
Nada, no entanto, justifica os xingamentos públicos a que foi submetida a
estudante e o cerceamento do seu direito à ampla defesa no caso da expulsão; de
igual maneira, nada justifica a expulsão extralegal de Zelaya do país,
realizada pelos militares, e o cerceamento do seu direito à ampla defesa quanto
às causas de sua deposição, em conformidade com os princípios que emanam da
Carta de Direitos Humanos da ONU (art. XI, 1) e do Pacto de San José da Costa
Rica (art. 8º), dos quais Honduras é signatária.
Como
não poderia deixar de ser, em ambos os casos existe uma retórica justificadora,
ou pelo menos uma tentativa de. No anúncio de expulsão a Uniban interpretou a
atitude da turba agressora, composta por seus alunos, como uma “reação coletiva
de defesa do ambiente escolar” e justificou o desligamento da estudante do
quadro discente da instituição “em razão do flagrante desrespeito aos
princípios éticos, à dignidade acadêmica e à moralidade”. Seguindo essa linha
de raciocínio, o golpe em Honduras poderia ser interpretado como um reação
coletiva de defesa da legalidade e a expulsão de Zelaya, justificada em razão
do seu flagrante desrespeito aos princípios constitucionais. Numa tal situação,
segundo a interpretação dos golpistas, seria justificado incorrer no
desrespeito aos princípios constitucionais para se defender os princípios
constitucionais...
Dos
atos que caracterizaram o golpe de Estado – deposição sem ampla defesa e devido
processo legal, expulsão do país e pronto reconhecimento do novo governo por
decisão da mais alta corte – participaram amplos setores da sociedade
hondurenha, incluindo as Forças Armadas e os Poderes Legislativo e Judiciário.
Roberto Micheletti, o presidente ora de facto do país, é a face visível
do grupo golpista, a personificação da realidade política recém-instituída. Já
a turba que agrediu a estudante Geisy Arruda não tem um rosto. Aliás, é
justamente o anonimato o que viabiliza a atuação de turbas agressoras, pois
proporciona ao indivíduo a possibilidade de extravasar publicamente seus
rancores e frustrações com a convicção de que não será punido.
No
entanto é falsa a sensação de impunidade, num e noutro caso. O golpe em
Honduras tem motivado a punição a todo um país, que vem sofrendo com o
ostracismo da comunidade internacional. A Assembleia Geral da ONU aprovou uma
resolução que condena o golpe; Honduras foi suspensa da OEA; nenhum país
reconhece formalmente seu governo golpista; diversos países retiraram seus
embaixadores de Tegucigalpa; o FMI e o BID interromperam seus empréstimos ao
país – tudo isso resulta em um amplo congelamento das relações internacionais
de Honduras, tanto no âmbito diplomático quanto no comercial e financeiro. Por
outro lado, os alunos da Uniban têm relatado à imprensa terem sido alvos de
preconceitos diversos e que têm encontrado maior dificuldade para conseguir
emprego.
O
golpe de Estado e a atitude dos agressores da estudante como se vê não passaram
impunes, ainda que a punição tenha vindo de fora para dentro, sem ter partido
da via judicial ou administrativa como seria de se esperar. Além disso, a
punição não se limita aos transgressores, atingindo em um caso não só os
golpistas, mas todo o povo de Honduras, e no outro todos os alunos da Uniban,
mesmo aqueles que não participaram da agressão ou sequer estavam presentes na
universidade no dia dos acontecimentos. A punição extrapola, assim, os limites
da culpabilidade individual e atinge toda a coletividade.
O
caso do vestido rosa e o golpe em Honduras têm em comum o tempo em que
ocorreram, meados de 2009, e o espaço que a imprensa brasileira lhes tem
dedicado. São ambos ilustrativos de situações em que uma ação transgressora
inicial (reformar ilegalmente a Constituição e usar um vestido excessivamente
curto) motiva uma cadeia de reações (deposição e expulsão em um caso,
xingamento público e expulsão em outro) tão desproporcionais e ilegítimas que não
só minimizam a transgressão inicial, revalidando-a, como também transformam em
vítima o primeiro transgressor (o presidente deposto e a estudante do vestido
curto). Por conta disso, é mais do que compreensível a simpatia generalizada
que se formou em torno de Zelaya e de Geisy Arruda, assim como a forte reação
internacional e nacional que suscitaram contra si o golpe em Honduras e a
atitude moralista com relação ao vestuário.
Honduras
e a Uniban estão irmanadas pelo nível de descrédito de que têm gozado externamente
em função de atos ilegítimos, e de todo condenáveis, perpetrados por certos
grupos internos e por alguns de seus dirigentes. A Uniban, por força de toda a
pressão externa de que foi alvo, acabou por revogar a expulsão da estudante do
vestido curto e vem promovendo uma reflexão acerca dos acontecimentos junto a
seus alunos e funcionários. Resta agora saber até quando Honduras – ou melhor,
o grupo golpista que governa o país – resistirá à pressão externa para
reempossar o presidente democraticamente eleito e permitir o retorno da
normalidade democrática e das relações internacionais do país.
Quanto
ao destino dos protagonistas dessas duas histórias paralelas, por ora podemos
apenas constatar o óbvio: Manuel Zelaya teve coragem de retornar, clandestinamente,
a Honduras, mas ainda não foi aceito de volta, visto que permanece ilhado na
embaixada brasileira; Geisy Arruda, de sua parte, já foi aceita de volta, mas
ainda não teve coragem de retornar à Uniban. Aguardamos para breve, e
ansiosamente, os capítulos finais de ambas as novelas.
Fábio
Aristimunho Vargas,
mestre
em Direito Internacional pela USP,
é
escritor, professor e advogado
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