3 de junho de 2009

Resenha no Zero Hora

Zero Hora, Segundo Caderno, p. 4

Porto Alegre, 20 de maio de 2009


Poesia indomável


O poeta Ricardo Silvestrin analisa coleção que reúne poemas espanhóis do século 12 à Guerra Civil do país


Há poucos dias, uma repórter me perguntou se os poemas nos ônibus em Porto Alegre contribuíam para aproximar as pessoas da poesia. A pergunta supunha que houvesse uma distância. Respondi que, ao contrário, a poesia é tão próxima que se encontra nos ônibus. Se fosse distante, jamais estaria ali. Nosso mundo ocidental começa lá na Grécia antiga.


E o que herdamos dos gregos? Poesia e Filosofia. É através dessas duas artes que nos entendemos como seres humanos. Sem figurar, sem aprofundar, sem pensamento e linguagem não existimos. Foi quando o homem passou a falar de si mesmo e não mais dos deuses que se chegou à poesia lírica. Foi pela poesia que se entendeu como é uma língua. Língua não existe. O que temos é a fala. A língua é uma abstração. Lá se foram os gramáticos tentar formular como são as línguas. A quem recorreram? Aos poetas. Italiano se escreve assim porque Dante escreveu, diz como último recurso um gramático. O exemplo do português é Camões. Olha quantas páginas esse cara fez – dirá o gramático – vai duvidar dele? É claro que os poetas não planejaram virar matrizes de pensamento ou de linguagem. Artistas, fizeram o que tinha necessidade de fazer. Mas eles, mesmo sem querer, moldam a expressão, a maneira de perceber e de dizer as coisas de um povo. Mesmo que não leia um livro de poesia durante toda uma vida, ninguém está nem estará distante dela. As formas poéticas estão veladas nas canções populares, nas tramas de novelas, na fala do dia a dia, no jeito de ser, de pensar e de sentir. Uma viagem pelas relações entre a poesia e a sensibilidade de um povo é o que nos traz a leitura da coleção de poesia espanhola traduzida e organizada por Fábio Aristimunho Vargas para a editora Hedra.


Na Espanha, coexistem quatro línguas: castelhana, catalã, basca e galega. É uma Minibabel. Durante a ditadura de Franco, as outras três línguas que não a castelhana foram proibidas. Só com a constituição de 1978 é que voltaram a ser consideradas também como línguas oficiais. O trabalho do Fábio, paulista de origem espanhola, veio preencher uma lacuna que existia na própria história da literatura espanhola. Não havia até então uma antologia que contemplasse a poesia das quatro línguas. A seleção dos autores e dos textos abrange o período que vai do século 12 até a Guerra Civil espanhola, encerrada em 1939.


Épicos contando os feitos de um herói, cantigas louvando ou avacalhando alguém, relatos de moça virgem que não se entrega a quem a raptou, religiosos em conflito com o corpo e o espírito, louvações à bebedeira na brevidade da vida, reflexões refinadas e supimpas sobre a existência humana, amores exagerados que só existem assim nos textos, cantares à pátria, à língua, observações da natureza, humor inteligente, jogos criativos de palavras, crítica e sátira política e, de quebra, alguma sacanagem. As matrizes da poesia ocidental estão ali. Pelos quatro volumes, salta aos olhos o timaço castelhano: Jorge Manrique, guerreiro e nobre do século 15, Santa Teresa de Ávila no século 16, Góngora na virada para o 17, no mesmo século Quevedo e Calderón de La Barca, no 19 vêm Unamuno e Rosália de Castro e, na virada para o 20, Antônio Machado e Garcia Lorca. Por um lado, é leitura para iniciados. Por outro, uma vez que contempla o que, de certa forma, o senso comum espera do poema (amor, rima, sonoridades, versificação retrô) pode ser lido na rodoviária esperando o ônibus.


RICARDO SILVESTRIN*


* Escritor e publicitário



Baco não quer altar nem quer admiração

Salvat Monho (“Poesia basca”)

(1749-1821)


Baco não quer altar nem quer admiração.

Para os homens deixou somente uma instrução:

o vinho sem a água à vontade beberem,

se da morte manter-se a distância quiserem.


Se pensam que viver se reduz a existir,

felizes vamos ser e um bom gole ingerir.

Pois não sabemos como a vida prolongar,

Deixemo-nos beber se o coração mandar.


Se alguém se dá ao trabalho, então não perca a vez:

o copo está vazio, pode enchê-lo outra vez.

Gozar, até esquecer o que nos aborrece

e as lembranças ruins que ninguém esquece.


Bebamos outra vez; é como sói dizer:

que dois copos depois, o terceiro é um dever

E se esse coração no fundo ainda é triste,

talvez o quarto copo enfim o reconquiste.



(sem título)

Rosália de Castro (“Poesia galega” – autora também incluída na antologia castelhana)

(1837-1885)


Agora cabelos negros,

mais tarde cabelos brancos;

agora dentes de prata,

amanhã dentes quebrados;

hoje bochechas rosadas,

amanhã corpo enrugado.

Morte, morte negra,

cura de dores e enganos:

por que não matas as moças

antes que as matem os anos?



Epitáfio

Francesc Vicenç Garcia - (“Poesia catalã”)

(1579-1623)


(à sepultura de um grande bebedor de aguardente, que morreu de gota)

Aqui jaz o que pensou

estar a salvo da gota,

porque d’água um só gota

(só ardente) nunca tomou.

Por fim a gota o esgotou

e o tragou destes conflitos,

e por tempos infinitos

estará sua epiderme

ilesa, pois nenhum verme

a tomará dos mosquitos.



A Roma sepultada em ruínas

Francisco de Quevedo (“Poesia espanhola”)

(1580-1645)


Procuras Roma em Roma, ó peregrino,

e achar em Roma a própria Roma falhas;

se agora são cadáveres as muralhas,

é de si mesmo túmulo o Aventino.


Jaz, onde antes reinava, o Palatino;

e, do tempo corroídas, as medalhas

mais parecem destroços de batalhas

de outras idades que brasão latino.


Só o Tibre restou, cuja corrente,

se a regou cidade, hoje sepultura,

a chora em som funesto e comovente.


Ó, Roma, em teu grande esplendor e altura

fugiu-te o que era firma, e tão somente

o fugidio é que persiste e dura.



Fonte: site do Zero Hora.

A página pode ser visualizada aqui.


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