Descobri que o Bandeira tinha uma leitura mais firme e mais contida do que sempre imaginei, principalmente por causa do lirismo da sua poética. É uma leitura que chega a ser áspera até, mas ao mesmo tempo também uma leitura natural, espontânea, que não passa qualquer traço de afetação.
Essa e outras leituras estão no CD que acompanha a antologia “50 poemas escolhidos pelo autor”, que a Cosac Naify acaba de lançar a 55 reais (pena que não vi com desconto na Festa do Livro da USP). A antologia foi organizada pelo próprio Bandeira na década de 50 e as gravações, 29 poemas ao todo, foram feitas para o Selo Festa, que lançou originalmente na forma de três elepês.
Sobre o poema em si, além da parte em que o Bandeira entoa uma cantiga de roda (“Roseira dá-me uma rosa / Craveiro dá-me um botão”), tem um outro trecho que eu acho bastante emblemático:
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
.......Ao passo que nós
.......O que fazemos
.......É macaquear
.......A sintaxe lusíada
Como não concordar com a beleza da fala do povo, a beleza do nosso português com açúcar? É uma visão essencialmente literária, de validade atemporal. O risco é encarar o trecho sob o aspecto científico, concordando com a afirmação equivocada de que no Brasil falaríamos uma versão distorcida da sintaxe lusitana – ou então cair no outro extremo, achando que tudo é legitimado na fala do povo (vide Bagno).
Bandeira, como os modernistas em geral, dava voz às teorias dos movimentos que pregavam um "Brasil lingüisticamente independente", que à época tinham já sido superadas no meio acadêmico mas que só então começavam a ser tomadas de bandeira nas esteiras dos movimentos culturais.
A exaltação dos valores locais era sim importante numa época em que o país passava por um processo de autoafirmação como nação, aos 100 anos de independência, e evidentemente nesse pacote entrava também a exaltação à fala coloquial brasileira.
Foi com o Modernismo que a literatura passou a ter um papel ativo no nascente projeto de desenvolvimento nacional (e a partir dele sempre se manteve em compasso firme com esse projeto, pelo menos até o Concretismo). Nesse contexto, era natural que os artistas dessem voz a teorias sobre a variante brasileira da língua, até então restritas ao meio acadêmico.
Pois foi a partir da exaltação à fala brasileira por parte de poetas como Mário de Andrade, Oswald e Drummond, além do próprio Bandeira, que os brasileiros conseguimos superar definitivamente o complexo de inferioridade e a culpa por não seguirmos à risca a norma portuguesa.
A lingüística pode ter assentado as bases teóricas da norma brasileira, mas foram os poetas de 22 que transpuseram a barreira cultural. Isso fica cristalino em Bandeira, para quem o povo, com sua língua certa e errada, “é que fala gostoso o português do Brasil”.
Reler Bandeira, para mim, é sempre uma experiência de reencontro; ouvi-lo então, pela primeira vez, é uma peripécia que me fez rever conceitos – o que está só começando, pois ainda falta ouvir os outros 28 poemas.
(Bem que a Cosac Naify podia mandar o livro para uma análise crítica do medianeiro.)
Carpe diem!
4 comentários:
(hahá! ontem peguei o livro na mão e fiquei pensando a mesma coisa)
gostei da tua postagem, tem a ver sim. obviamente que "atemporal" para mim é um adjetivo complicado, mas o resto passou, achei bem importante, quem sabe não acrescento em um dos trabalhos de africanas?
e quero fotos & fofocas da rave!
a convalescente
Nunca diga definitivamente. Quanto ao CD, definitivamente é caso de copyleft, desde que muito bem assessorado.
Abraços e espero que tudo tenha terminado bem ontem!
FAV, ano passado um diplomata brasileiro encontrou entre suas coisas uma fita com o Bandeira lendo seus poemas, trechos foram exibidos na Cultura e salvo engano até na Globo. Não ouvi falar mais nada desse material, que imagino não tenha nada a ver com o da Cosac, então quem sabe teremos mais uma boa notícia pela frente. (agora, cá entre nós, depois que eu comprei um vinil com o Drummond lendo todos os seus poemas quando leio já vêm com a sua voz, será que com o Bandeira se dará o mesmo?) ABraços
Oi, Fábio! Não pude me conter ao ler sua postagem. Saindo hoje do Sujinho com o Marco - mais do que fartos - demos de cara com bichos famintos por entre os sacos de lixo da calçada. E os bichos, meu Deus, eram homens. Bandeira na cabeça e um aperto no peito. Coincidência (feliz, claro) vê-lo aqui também. Beijos.
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