Fábio Aristimunho Vargas*
1. Apresentação
O presente
estudo pretende fornecer
um panorama
dos diferentes status de que
gozam as línguas atualmente
faladas na Península Ibérica (aqui
considerada como o território
continental que
reúne Portugal, Espanha, Andorra e Gibraltar) e como
isso se reflete nos
diferentes sistemas
jurídicos das línguas
não dominantes
ou minoritárias da região .
2. Situação de Portugal
O português é a língua da totalidade dos
portugueses. Partindo desse pressuposto, é recorrente
a menção a Portugal como
um exemplo
de país uniforme ,
em que
se confundiriam os conceitos de nação , língua e
território . Isso
no entanto deixou de ser verdade – pelo menos oficialmente – desde
1999, quando o Parlamento
reconheceu a existência , concedeu proteção e atribuiu status de
co-oficialidade a um idioma minoritário falado
por uma restrita parcela
da população de uma remota
região do país ,
o mirandês.
·
mirandês
O mirandês é empregado
hoje por
cerca de 15 mil
falantes , sobretudo
pessoas idosas do meio
rural . Sua
área se restringe à cidade
de Miranda do Douro e mais duas aldeias próximas, na região
de Trás-os-Montes (nordeste de
Portugal), onde é ensinada nas escolas . É uma língua
afiliada ao ramo asturiano-leonês.
Supõe-se que exista em
Portugal desde a época
da Reconquista, entre os séc. XII e
XIII.
A língua
foi reconhecida como tal apenas em 1999, quando
o Parlamento Português
lhe concedeu o status de
co-oficialidade. É bastante significativo , e também
louvável, que um
país como
Portugal, historicamente tido como o mais uniforme
da Europa Ocidental , tenha reconhecido a
existência de uma língua
minoritária dentro de seu território .
Uma curiosidade :
em 2005 foi lançado em
Portugal o álbum “As aventuras de Astérix” em
mirandês, que foi um
verdadeiro sucesso de vendas . Como ,
no entanto , a população
nativa de fala
mirandesa é bastante reduzida, esse sucesso certamente deveu-se mais
à curiosidade dos compradores
por uma língua
desconhecida do que
propriamente ao seu mercado
original .
3. Situação da Espanha
A Constituição
Espanhola de 1978 concedeu autonomia às três nacionalidades
históricas[1],
nomeadamente os catalães , bascos e galegos ,
e atribuiu status de co-oficialidade em
âmbito regional
às “demais línguas
espanholas”:
“Artículo 3
1. El
castellano es la lengua española oficial
del Estado . Todos
los españoles tienen el deber de conocerla y el derecho a usarla.
2. Las demás lenguas españolas
serán también oficiales en las
respectivas Comunidades Autónomas de
acuerdo con sus Estatutos .
3. La riqueza
de las distintas modalidades lingüísticas de España es un patrimonio cultural que será objeto
de especial respeto y protección.”[2]
3.1. Línguas com legislação plena
·
catalão e
valenciano
O catalão é falado por cerca de 11 milhões
de falantes , distribuídos pelas seguintes regiões :
Catalunha (exceto o Vale
de Arán), faixa oriental
de Aragão, Ilhas Baleares
e Valência (sobretudo
no litoral ); fora
da Espanha, o catalão também é falado
no Departamento dos Pirineus Orientais
na França (onde não
é língua reconhecida oficialmente ), no Principado
de Andorra (onde é língua
oficial , ao lado
do castelhano e do francês )
e na cidade de Alghero, na Sardenha,
Itália (onde não
é língua reconhecida oficialmente ).
Considera-se o catalão a língua
minoritária mais importante
da Europa. Na verdade é contestável seu título de
“minoritária”, haja vista sua proeminência
nos territórios
onde é falada
e a peculiaridade de gozar
de alto prestígio
entre os falantes .
Nas ruas de Barcelona vigora um bilingüismo estrito para todos os usos , com uma sensível
predileção pelo
catalão no trato
social e destaque
nas placas públicas. Atualmente , no contexto
do debate sobre
a proposta de um
novo Estatuto
de Autonomia para
a Catalunha, tem-se discutido a disposição que pretende tornar a língua catalã obrigatória
tanto quanto
o castelhano , questionando-se se tal disposição não seria inconstitucional .
O valenciano, falado na Comunidade
Valenciana principalmente na região litorânea ,
é considerado pelos lingüistas
como uma variante
do catalão . No entanto ,
por questões
meramente políticas ,
em março de 2006 a Comunidade
Valenciana optou por reconhecer ,
em seu
Estatuto de Autonomia ,
o valenciano como uma língua autônoma
em relação
ao catalão . A questão
principal é de simples
denominação : diz-se que
o “catalão ” é a língua
da Catalunha, enquanto que o “valenciano” seria a língua
de Valência (obviamente o fundamento científico
para tal distinção é bastante
frágil ). O valenciano goza , em sua área de ocorrência , de todas as prerrogativas
legais de uma língua
co-oficial.
·
basco
O basco
atualmente é falado
por cerca
de 600 mil a 700 mil
falantes (chamados de euskaldunak), nas Comunidades
Autônomas de País Basco
e Navarra, na Espanha, e no Departamento de Pirineus
Ocidentais , na França, onde não é
reconhecido oficialmente .
O basco
é a única língua
não indo-européia falada
na Europa Ocidental e a mais antiga de toda a Europa. Não
se sabe ao certo sua
origem e não
se reconhece sua filiação
a qualquer dos ramos
lingüísticos que
abarcam as línguas vivas
nos dias
de hoje . Sabe-se apenas
que é anterior
às primeiras invasões celtas na Península
Ibérica , a cuja
língua sobreviveu, assim
como sobreviveu à imposição
do latim durante
o Império Romano ,
às invasões e às línguas
germânicas, à dominação árabe
na Península e, mais
recentemente , à inescapável sobreposição
do castelhano e do francês .
O seu léxico
peculiar e a sua
estrutura gramatical
tida como de difícil
aprendizado para
os não nativos ,
com seus
cerca de 24 casos
de declinação , sempre
fizeram do basco uma língua
suscetível a mitos
e preconceitos de diversas ordens , sobretudo à vista dos falantes
dos ibero-romances que o rodeiam.
·
galego
O galego
é falado , hoje ,
por cerca
de 3 milhões a 4 milhões
de pessoas , na região
da Galiza[3] e
na parte ocidental
do Principado de Astúrias. É reconhecido
pela grande
maioria dos lingüistas
como parte
de um sistema
(ou diassistema) lingüístico
chamado de galego-português, que , na Península
Ibérica , engloba a língua
galega e o português .
No entanto , por
razões de ordem
eminentemente política ,
tem-se evitado reconhecer oficialmente
tal filiação ,
optando-se por atribuir-lhe um status lingüístico
artificial , ao arrepio
dos critérios sócio-lingüísticos mais bem assentados.
3.2. Línguas com legislação parcial
Consideram-se como línguas com legislação parcial as línguas
que não
são expressamente
reconhecidas como tais
nos Estatutos
de Autonomia das regiões
onde são
faladas, não sendo, portanto ,
co-oficiais com o castelhano ,
como ocorre com
as línguas com
legislação plena .
Nesta categoria se enquadram o aragonês,
o asturiano, o estremenho e o aranês.
Na legislação
local dessas línguas
há apenas referência
a elas e à sua
“proteção ”, o que
não é suficiente
para atribuir-lhes um
status
de oficialidade , o que
poderia assegurar ,
entre outras coisas ,
o seu emprego
na escolarização. Em seus domínios é
o castelhano que
permanece como língua
de prestígio , empregado
nos meios
sociais , enquanto
que a língua
local é reservada
para o trato familiar .
·
aragonês
O aragonês é a língua de cerca
de 30 mil falantes
ativos , que
têm uma média de idade
elevada . É empregada
no norte de Aragão, onde
a alfabetização é feita praticamente 100% em castelhano .
O aragonês é por vezes
tido como um
“dialeto ” do castelhano ,
dada a proximidade
das duas línguas . Não
possui uma legislação específica tratando de seu
emprego ou
normalização.
·
asturiano
O asturiano é uma língua falada por cerca de
100 mil falantes
nativos , mais
450 mil que
a têm como segunda
língua , circunscrita
ao Principado de Astúrias (exceto a parte ocidental ), Cantábria e norte
de Castela-Leão. Pertence à família do asturiano-leonês, à qual
também pertencem o mirandês, falado na região
de Miranda do Douro, em Portugal, e o
estremenho. Existe uma lei de 1998 que protege e defende o asturiano, embora não
disponha sobre o seu
uso administrativo
nem escolar .
·
estremenho
O estremenho possui cerca de 200 mil
falantes regulares
no norte de Estremadura .
Não possui uma normalização específica e não
é empregado no sistema
de ensino . Derivada do ramo asturiano-leonês, seus
falantes preferem a língua
local nos
ambientes familiares ,
reservando o castelhano para
situações sociais
e a atividade intelectual
(leitura etc.).
·
aranês
O aranês é uma língua bastante
restrita, empregada por
cerca de 3.800 falantes ,
além de cerca
de 1.300 pessoas que
a entendem, estando circunscrita à região do Vale de Arán, no norte da Catalunha. Sua
situação legal
é bastante peculiar ,
por dois motivos : (i) é reconhecida pelo
Estatuto de Autonomia
da Catalunha, que não
só devolveu prestígio
ao catalão como
também teve o cuidado
de proteger o aranês,[4] que veio assim a se constituir
numa espécie de exceção
da exceção , uma autonomia
dentro da autonomia ;
e (ii) o fato de ser
a única variante
do occitano que goza
de algum grau de oficialidade ,
apesar de diversas variantes
do occitano serem faladas em vastas regiões da França e Itália, sendo que
isto veio
curiosamente a ocorrer
justo no contexto
ibérico , onde
o aranês não possui familiaridades com os demais romances locais
e em que
constitui uma espécie de enclave lingüístico .
3.3. Línguas criadas por decreto
Podemos chamar de “línguas criadas por
decreto ” àquelas instituídas pelas legislações regionais
sem bases
sócio-lingüísticas que o justifiquem. Isso geralmente
ocorre quando o legislador
de uma determinada região
não quer
reconhecer oficialmente
a filiação de uma língua
falada naquela circunscrição ,
optando por conceder-lhe uma identidade que não é a sua . Assim , por meio de uma simples
lei , um
enclave lingüístico
se converte em uma língua
nova . É o caso
do galego-asturiano ou eonaviego e do fala .
·
galego-asturiano
ou eonaviego
O galego-asturiano ou eonaviego é como
é conhecida a variante
dialetal da língua
galega falada
na parte ocidental
do Principado de Astúrias. Tem a peculiaridade de ter
sofrido grande influência
do asturiano, mas a maioria
dos lingüistas reconhece sua filiação ao galego . Ocorre que
o governo do Principado
e a Academia de Língua
Asturiana normalizaram o galego-asturiano conforme
a norma asturiana, ignorando por completo a norma galega . Apesar disso, ao que
consta a literatura em
galego-asturiano desconsidera a norma
asturiana e emprega sobretudo
a norma do galego .
·
fala
A língua
conhecida como
fala
é uma variante do galego
empregada no norte
de Estremadura . A legislação
comunitária não
a reconhece como variedade
do galego , optando apenas
por identificá-la como
uma variedade lingüística
a ser protegida, referindo-se incidentalmente a ela
apenas como
“a fala ”.
3.3.1. Casos especiais
Nesta categoria
de línguas criadas por
decreto poderia
ser também
incluído o valenciano, que , conforme mencionado, é considerado pelos lingüistas
como uma variedade
do catalão e só
goza do status de língua
autônoma por
disposição expressa
do Decreto de Autonomia
da Comunidade Valenciana. No entanto o valenciano goza
em sua
região de todas as prerrogativas
de que gozam as línguas
com legislação
plena , como
o status de co-oficialidade, emprego no sistema
de educação e prestígio
entre os falantes .
3.4. Línguas não reconhecidas
Nesta categoria
se incluem as línguas que não gozam
de qualquer reconhecimento
ou proteção
oficial nas regiões
onde são
faladas. É o caso do andaluz (Andaluzia), do murciano (Múrcia) e do português falado em regiões
fronteiriças da Espanha em contato com
Portugal.
4. Situação de Gibraltar
Convém aqui
mencionar a situação
especial da língua
inglesa na Península Ibérica . Em
1713, com o Tratado
de Utrecht, o território de Gibraltar
foi cedido à Grã-Bretanha como parte do pagamento da Guerra de Sucessão
Espanhola. Desde então ,
Gibraltar é uma possessão britânica e constitui um
enclave lingüístico
da língua inglesa, que
é a língua oficial
do território . Paralelamente
ao inglês também
se falam o castelhano e o “llanito”, que é uma mistura
de inglês com
espanhol e que
não tem reconhecimento
oficial .
5. Situação de Andorra
O Principado
de Andorra tem como chefes
de Estado , ou
co-príncipes, o presidente da República Francesa e o bispo
da comarca catalã de Urgel. A língua oficial
do Principado é o catalão ,
mas o castelhano
e o francês também
são empregados
na administração pública
e no sistema de educação
oficial .
6. Conclusão
A situação
jurídica das línguas
na Península Ibérica
é tão variada quanto
o é a sua diversidade
lingüística . Portugal, Andorra e Gibraltar
apresentam situações peculiares , com
características muito
próprias, mas todos
fruindo de um estável
e bem definido
regime jurídico
de línguas . O caso
que merece mais
atenção é o da Espanha.
À primeira
vista , a atual
legislação espanhola parece bastante progressista
com relação
às línguas faladas em
seu território ,
sobretudo quando
vista em
perspectiva histórica
e comparada com a de países vizinhos ,
como a França. No entanto
a situação lingüística
no país está longe
de ser invejável.
A diferença
de status
jurídico das línguas
espanholas regionais ainda é uma questão a ser resolvida, em
especial quanto
à obrigatoriedade de conhecimento apenas
da língua castelhana ,
em contraste
com o mero
direito de conhecimento
das demais línguas .
Também está pendente
de definição o problema
do reconhecimento local
de uma língua não-dominante quando falada em mais de uma comunidade autônoma ,
como ocorre com
as variantes do galego
faladas em Astúrias e Estremadura .
É sabido
que a definição
de língua
não é um
conceito universal ,
sofrendo fortes variações em função de aspectos culturais. No caso
da Espanha, contudo , a definição de língua tem se orientado por critérios eminentemente políticos ,
em detrimento
de critérios sociais
e lingüísticos .
7. Bibliografia consultada
PROEL. Promotoría
Española de Lingüística . Acervo
disponível em :
.
SILVA, Inmaculada López. A
lingua galega e as leis :
notas para
reflexión. Disponível em : . Acessado em : 30/3/06.
WALTER, Henriette. A aventura das línguas
no ocidente : origem ,
história e geografia .
3a. ed. São Paulo: Mandarim ,
1997.
WIKIPEDIA – Enciclopédia
Livre . Disponível
em : .
*
É advogado ; bacharel
em Direito
e mestre pela
USP; estudante de Letras ;
poeta (autor
do livro Medianeira, Quinze
& Trinta, 2005). Também é tradutor
do castelhano e estudante
de basco e catalão .
[1] “Artículo 2: La Constitución se fundamenta
en la indisoluble unidad de la Nación española, patria común e indivisible de todos los españoles, y reconoce y garantiza el derecho
a la autonomía de las nacionalidades y
regiones que la integran y la
solidaridad entre todas ellas.”
[2]
Tradução livre: “1. O castelhano é a língua espanhola oficial do Estado. Todos
os espanhóis têm o dever de conhecê-la e o direito de usá-la. 2. As demais
línguas espanholas serão também oficiais nas respectivas Comunidades Autônomas
de acordo com seus Estatutos. 3. A riqueza das diferentes modalidades
lingüísticas da Espanha é um patrimônio cultural que será objeto de especial
respeito e proteção.”
[3] A
região setentrional mais ocidental da Espanha chama-se Galiza, tanto em português quanto em galego. “Galícia” é um espanholismo bastante recorrente, sobretudo no
Brasil, mas ainda assim inadequado para designar essa região.
[4] Estatuto de Autonomia da Catalunha:
"Artículo 36.
Derechos con relación al aranés.
1. En Arán todas las personas tienen el derecho a
conocer y utilizar el aranés y a ser atendidas oralmente y por escrito en
aranés en sus relaciones con las Administraciones públicas y con las entidades
públicas y privadas que dependen de las mismas.
2. Los ciudadanos de Arán tienen el derecho a
utilizar el aranés en sus relaciones con la Generalitat.
3. Deben determinarse por Ley los demás derechos y
deberes lingüísticos con relación al aranés."
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