Fábio Aristimunho Vargas[1]
1. Introdução
Nas monarquias antigas, medievais e até o início da Idade Moderna, não
havia em princípio uma divisão funcional dos poderes do governo, sendo o
monarca e (ou) as assembleias populares os encarregados de legislar, executar
as leis e julgar as controvérsias. Era esse o caso, por exemplo, do tirano
Creonte, rei lendário de Tebas retratado por Sófocles em sua tragédia Antígona, que acumulava poderes
suficientes para baixar um decreto proibindo que se prestassem honras fúnebre a
Polinice, para julgar sua irmã Antígona por havê-lo enterrado em desobediência
à “lei dos homens” e para executar a lei ao determinar o cumprimento da pena.
Ou seja, Creonte concentrava em si os poderes de criar, julgar e executar a
lei.
Essa forma de exercício do poder sofreu importante impacto com o
processo de constitucionalização que ganhou força ao longo do séc. XIX. Atualmente,
todo sistema constitucional se baseia no princípio da divisão do poder do Estado
em três órgãos distintos, independentes e harmônicos entre si: o Legislativo, o
Executivo e o Judiciário. Desses três órgãos, um é responsável por elaborar a
lei (Legislativo), outro por executá-la (Executivo) e o terceiro por julgá-la
(Judiciário).
Não se trata de uma divisão meramente burocrática, como se dá com a
divisão material do poder em departamentos (ministérios, secretarias etc.), nem
é uma divisão estanque. Não se presume que os poderes devam atuar com plena
independência e plena autonomia. O poder é um só e o que se divide é o seu
exercício em três órgãos distintos. Trata-se, em suma, de uma divisão funcional do poder de soberania.
O presente artigo tem por objetivo expor sucintamente os fundamentos
teóricos da divisão dos poderes e, em seguida, analisar tal divisão à luz do
constitucionalismo brasileiro.
2. Teóricos da divisão de poderes
A grande preocupação dos teóricos da divisão de poderes foi evitar a
concentração de tanto poder numa só pessoa ou órgão. A limitação do poder pelo poder é o objetivo da divisão de poderes.
Platão teorizava que “não se deve estabelecer jamais uma autoridade
demasiado poderosa e sem freio nem paliativos”, elogiando a contraposição, em
Atenas, dos poderes do rei em face da assembleia dos anciãos. Aristóteles, na
obra Política, esboçou a tríplice
divisão de poderes.
John Locke, filósofo empirista inglês do séc. XVII, aconselhava a
divisão do poder em quatro funções. Também Rousseau, filósofo francês do séc.
XVII, concebeu uma doutrina da separação dos poderes.
Foi Montesquieu, autor de O
espírito das leis (1748), o teórico que sistematizou o princípio da divisão
dos poderes com maior profundidade. Há aí um evidente paralelo com a tipologia
das formas de governo estabelecida por Aristóteles:
Monarquia (governo
de um)
|
Poder Executivo
|
Aristocracia
(governo dos melhores)
|
Poder Judiciário
|
Democracia
(governo do povo)
|
Poder Legislativo
|
Montesquieu enfatizava a necessidade de equilíbrio e harmonia entre os
três poderes.
3. Divisão dos poderes nas constituições
modernas
A formulação de Montesquieu da divisão tripartite do poder foi desde
logo adotada como “dogma” pelos Estados liberais e assim permanece até hoje sem
grandes alterações.
A Constituição da Virgínia, de 1776, foi a primeira Constituição
escrita a adotar a doutrina de Montesquieu, seguida pelas de outras ex-colônias
inglesas da América do Norte. Por fim, em 1787, a Constituição dos Estados
Unidos da América inscreveu a divisão tripartite de poderes como um de seus
princípios fundamentais. Os constitucionalistas estadunidenses chamam de sistema de freios e contrapesos essa
doutrina de contenção do poder pelo poder.
A divisão dos poderes foi celebrada também pela Revolução Francesa.
Assim afirma o art. 16º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
(1789): “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem
estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”.
4. Divisão dos poderes no constitucionalismo
brasileiro
No Brasil sempre se respeitou a divisão de poderes. A Constituição do
Império, de 1824, adotava a separação quadripartita de poderes conforme a
formulação de Benjamin Constant: poderes Moderador, Legislativo, Executivo e
Judiciário. Ao imperador cabia os poderes Moderador e Executivo. O Poder
Moderador, situado hierarquicamente acima dos demais poderes, seria responsável
pelo equilíbrio entre eles.
As Constituições brasileiras posteriores adotaram a divisão em três
poderes conforme Montesquieu. A Constituição Federal de 1988 (CF/88) manteve o
princípio nos seguintes termos: “Art. 2º São Poderes da União, independentes e
harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
4.1 Poder Legislativo
Ao Legislativo cumpre, em síntese, legislar e fiscalizar os atos do Executivo.
Legislar significa elaborar leis. Os deputados federais, os senadores,
os deputados estaduais e os vereadores são os legisladores e representam a
sociedade, pois são eleitos pelos cidadãos para que os representem no momento
de discutir temas de interesse público e propor leis.
O Legislativo tem mecanismos para controlar o Executivo, por meio de
fiscalização contábil, financeira, orçamentária e patrimonial. Todas estas
atribuições estão descritas no art. 44 da CF/88.
O Legislativo é estruturado em níveis federal, estadual e municipal.
a) Legislativo Federal
O Legislativo Federal (art. 44 a 75 da CF) é organizado em um sistema
bicameral, ou seja, existem duas casas legislativas: o Senado Federal
(representante dos estados e do DF) e a Câmara dos Deputados (representantes do
povo). As duas casas juntas são chamadas de “Congresso Nacional”, que não é
senão o parlamento brasileiro.
O Senado Federal é composto por 81 senadores, que representam as 27
unidades da Federação (26 estados federados e o Distrito Federal). Cada estado
e o DF elegem três senadores para um mandato de oito anos. O Senado é renovado
à razão de 1/3 e 2/3 a cada quatro anos. Tradicionalmente os países que adotam
o Federalismo e o bicameralismo, a exemplo dos EUA, atribuem dois senadores a
cada unidade da Federação; no Brasil o número de senadores por unidade foi
aumentado de dois para três com a Constituição de 1946, e cada senador é eleito
com dois suplentes.
A Câmara é formada por 513 deputados federais, que são os representantes
do povo brasileiro. O mandato dos deputados federais é de quatro anos. Os
estados e o DF elegem, cada um, um número de deputados federais proporcional à
sua população. A partir de um cálculo complexo que parte da determinação
constitucional de um mínimo de oito e um máximo de setenta deputados federais
por unidade, chega-se à atual definição do número de deputados federais para
cada unidade da Federação:
·
São Paulo (70)
·
Minas Gerais (53)
·
Rio de Janeiro
(46)
·
Bahia (39)
·
Rio Grande do Sul
(31)
·
Paraná (30)
·
Pernambuco (25)
·
Ceará (22)
·
Maranhão (18)
·
Pará (17)
·
Goiás (17)
·
Santa Catarina
(16)
·
Paraíba (12)
·
Espírito Santo
(10)
·
Piauí (10)
·
Alagoas (9)
·
Amazonas (8)
·
Rio Grande do
Norte (8)
·
Mato Grosso (8)
·
Distrito Federal
(8)
·
Mato Grosso do
Sul (8)
·
Sergipe (8)
·
Rondônia (8)
·
Tocantins (8)
·
Acre (8)
·
Amapá (8)
·
Roraima (8)
Dessa forma de cálculo resultam
algumas distorções no pacto federativo. Alguns estados acabam sub-representados
enquanto outros gozam de hiper-representatividade. São Paulo, por exemplo, tem
cerca de 21% da população do país e fica com apenas 13,6% das cadeiras da
Câmara; Roraima, com cerca de 0,2% da população brasileira, tem garantido 1,6%
das cadeiras. De maneira geral os estados da região norte têm
representatividade maior do que sua proporção em relação à população
brasileira.
Os deputados federais e os senadores podem se reeleger indefinidamente.
O Congresso Nacional elabora normas (processo legislativo) que valerão
para todo o país. Podem dispor sobre todas as matérias de competência da União,
que estão listadas no art. 21 e seguintes da CF.
b) Legislativo Estadual
A Assembleia Legislativa é a única casa legislativa estadual. Nela se
reúnem os deputados estaduais eleitos pela população de cada estado. O mandato
dos deputados estaduais é de quatro anos, podendo ser reeleitos. As leis
elaboradas por eles valem apenas para o estado que os elegeu.
O número de cadeiras de cada Assembleia Legislativa é proporcional à
população do estado.
No DF os deputados são chamados deputados distritais, instalados na
Câmara Legislativa.
c) Legislativo Municipal
A Câmara Municipal é a única casa legislativa do município. Nela se
reúnem os vereadores, eleitos pela população de cada município. Os vereadores
têm um mandato de cinco anos podendo ser reeleitos. As leis elaboradas pelos
vereadores valem apenas para o município que os elegeu. O DF não tem
vereadores.
4.2. Poder Executivo
O Poder Executivo tem como função a prática de atos de governo e de
administração da coisa pública. Isso quer dizer que o Executivo é o responsável
por executar as leis e administrar a União, os estados e os municípios.
O Executivo no Brasil se divide em três instâncias: federal, estadual e
municipal
a) Executivo Federal
O Chefe de governo (ou seja, o presidente da República) é o chefe do
Executivo Federal. O presidente é eleito pelo voto direito dos brasileiros para
um mandato de quatro anos, podendo haver uma reeleição subsequente.
O vice-presidente é eleito com o presidente, em uma única chapa. Em
caso de impedimento do presidente, poderão sucedê-lo, nesta ordem: o
vice-presidente, o presidente da Câmara dos Deputados, o presidente do Senado e
o presidente do Supremo Tribunal Federal.
Algumas competências privativas do presidente da República:
·
nomear e exonerar os ministros de Estado;
·
exercer a direção superior da administração
federal;
·
manter relações com Estados estrangeiros e
acreditar seus representantes diplomáticos;
·
participar do processo legislativo (criação de
leis), na forma da CF;
·
celebrar tratados internacionais, sujeitos à
aprovação do Congresso Nacional;
·
comandar as Forças Armadas (art. 84, CF) etc.
Os ministros de Estado são os assessores do presidente, sendo
escolhidos diretamente por ele dentre brasileiros maiores de 21 anos de idade.
b) Executivo Estadual
O chefe do Executivo Estadual é o governador, eleito pelo povo de cada
Estado (e do DF, onde se chama governador distrital) para um mandato de quatro
anos, permitida uma reeleição subsequente.
Os assessores do governador são os secretários estaduais, que respondem
por temas como saúde, educação, cultura etc., no âmbito do respectivo estado.
c) Executivo Municipal
O chefe do Executivo Municipal é o prefeito, que é eleito pelo povo de
cada município. Seu mandato é de quatro anos e a possibilidade de um segundo
turno durante a eleição depende do número de eleitores de cada município. Seus
auxiliares são os secretários municipais. No Distrito Federal não existem
prefeitos.
4.2.1. Síntese da estruturação do Executivo e
do Legislativo no Brasil
Nível
|
Ente
|
Lei Maior
|
Chefe do Executivo
|
Formação do Legislativo
|
Federal
|
União
|
Constituição Federal
|
presidente
|
Câmara do deputados (513 deputados federais) e Senado Federal (81 senadores)
|
Estadual
|
Estados federados
|
Constituição Estadual
|
governador estadual
|
Assembleia Legislativa
(deputados estaduais)
|
Distrito Federal
|
Lei Orgânica
|
governador distrital
|
Câmara Legislativa (deputados distritais)
|
|
Municipal
|
Municípios
|
Lei Orgânica
|
prefeito
|
Câmara Municipal (vereadores)
|
4.3. Poder Judiciário
Ao Judiciário
cumpre “judicar”, ou seja, julgar a lei. Isso significa que os juízes têm a
função de determinar a aplicação das leis e decidir sobre conflitos.
O Judiciário não
tem a importância política dos outros Poderes, mas constitui a principal
garantia da efetivação das liberdades e dos direitos individuais e sociais.
No Brasil o
princípio da “inafastabilidade da apreciação judiciária” está assegurado na
CF/88 nos seguintes termos: “a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5º, XXXV).
O Judiciário no
Brasil está estruturado conforme uma divisão racional das matérias a serem
analisadas. São estes os seus organismos e suas respectivas competências:
·
Justiça do Trabalho: dissídios
entre trabalhadores e empregados em decorrência da relação de trabalho;
·
Justiça Eleitoral: matérias referentes a eleições,
partidos, perda de mandato e crimes eleitorais;
·
Justiça Comum Federal: causas em que
a União for parte (impostos federais, licitações, etc.) ou for vítima de crime
e ainda temas fundados em tratados internacionais;
·
Justiça Comum Estadual: competência
residual, ou seja, todas as matérias não especificadas nas outras justiças (ex:
crimes comuns, contratos, direito de família, sucessões, direito empresarial,
danos materiais etc.); é a que tem mais competências.
A fim de que
eventuais erros dos juízes possam ser corrigidos e também atender à natural
inconformidade da parte vencida diante de julgamentos desfavoráveis,
estabeleceu-se o princípio do duplo grau
de jurisdição: o vencido tem, dentro de certos limites, a possibilidade de
obter uma nova manifestação do Judiciário. Para que isso possa ser feito, é
preciso que exista uma hierarquia de tribunais.
A seguir um
sucinto organograma dos tribunais brasileiros:
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), criado em 2005, é o órgão do
Poder Judiciário encarregado de controlar a atuação financeira e administrativa
dos demais órgãos, além de supervisionar o cumprimento dos deveres funcionais
dos juízes.
5. Considerações finais
O governo é a soberania em ação. São distintos os órgãos de
manifestação do poder de soberania e cada um exerce a totalidade do poder
soberano dentre da sua esfera de atuação. “Cada ato de governo, manifestado por
um dos três órgãos, representa uma manifestação completa do poder.”[4]
Kant comparou o Estado à Santíssima Trindade, pois trinos e unos ao
mesmo tempo. Tal como os órgãos do corpo humano, os poderes do Estado mantém
uma relação vital e nenhum deles representa, sozinho, a plenitude da vontade do
Estado.
O adjetivo independente é,
portanto, incompatível com a doutrina da divisão dos poderes. Os poderes só são
independentes na medida em que funcionam separadamente. A divisão é formal e
funcional, porém não substancial. Os poderes se integram e se complementam
mutuamente com o objetivo de manifestar a soberania nacional.
Referências bibliográficas
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso
de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1995.
BRASIL. Câmara dos Deputados.
Portal da Câmara dos Deputados. Disponível em: .
Acessado em nov.2011.
BRASIL. Constituição da
República Federativa do Brasil. Diário
Oficial da União, Brasília, DF, 05 out. 1988.
MALUF, Sahid. Teoria geral do Estado. São Paulo:
Saraiva, 1995.
SILVA, José Afonso. Curso
de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2004.
[1] Professor, escritor e
advogado. Mestre em Direito Internacional pela USP.
[2] Os juízes militares e os
Conselhos de Justiça exercem o primeiro grau de jurisdição. Como não existem
“Tribunais Regionais Militares”, o segundo grau de jurisdição é exercido
diretamente pelo STM.
[3] A primeira instância é
constituída pelos juízes militares e pelos Conselhos de Justiça (um juiz togado
e quatro oficiais); a segunda instância, nos estados de SP, RJ e MG, cumpre aos
respectivos Tribunais de Justiça Militar, enquanto nos demais estados e
Distrito Federal cabe aos TJs.
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