Fábio Aristimunho Vargas[1]
1. Introdução
Os direitos humanos são fruto de uma longa construção histórica. Seu
nascimento se dá efetivamente no séc. XVIII, com a Revolução Americana e a
Revolução Francesa, mas se pode considerar que vinham se delineando, ainda que
de maneira precária e bastante incipiente, desde a Antiguidade.
Importante lembrar Montesquieu, que na primeira metade do séc. XVIII
afirmava: “Se eu soubesse de algo que fosse útil a mim, mas prejudicial à minha
família, eu o rejeitaria de meu espírito. Seu eu soubesse de algo útil à minha
família, mas não à minha pátria, procuraria esquecê-lo. Se eu soubesse de algo
útil à minha pátria, mas prejudicial à Europa, ou então útil à Europa, mas
prejudicial ao Gênero humano, consideraria isto como um crime.”[2]
O presente artigo tem por objetivo apresentar uma síntese da evolução
histórica dos Direito Humanos, destacando ao final alguns importantes
documentos anteriores à Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948.
2. Direitos humanos na Antiguidade
A consciência histórica dos direitos humanos só se deu após um longo
trabalho preparatório, centrado em torno da limitação do poder político. Um
primeiro passo decisivo na admissão da existência dos direitos humanos foi o
reconhecimento de que as instituições de governo devem ser utilizadas para o
serviço dos governados e não para o benefício pessoal dos governantes.
A proto-história dos Direitos Humanos começa por volta do séc. X a.C.,
quando se instituiu, sob Davi, o reino unificado de Israel, tendo como capital
Jerusalém. O reino de Davi (c. 996-963 a.C.) estabeleceu a figura do
rei-sacerdote. pela primeira vez na história política da humanidade, o monarca
não se proclama deus nem se declara legislador, mas se apresenta como o
representante do Deus único e o responsável supremo pela execução da lei
divina. Nascia assim uma organização política em que os governantes não criam o
direito para justificar seu poder, mas submetem-se aos princípios e normas
editados por uma autoridade superior (embrião do Estado de Direito).
A democracia ateniense, no séc. VI a.C., tinha por fundamento a
preeminência da lei e a participação ativa do cidadão nas funções de governo.
Pela primeira vez na História um povo governava a si próprio, apesar dos
desvios da demagogia. Em uma passagem de sua História, Heródoto narra a explicação de Demerato, antigo rei de
Esparta, a Xerxes, rei dos persas, sobre a importância da lei para os gragos.
Após Xexes demonstrar todo o seu desprezo por aquele povo, “todos igualmente
livres e fora da influência de qualquer senhor”, Demerato lhe explica que,
“embora livres, [os gregos] não o são da maneira que imaginais. A lei é, para
eles, um senhor absoluto, e não temem menos que os vossos súditos a vós. Obedecem
aos seus ditames, às suas determinações, que são ordens, e essas ordens
impedem-nos de fugir diante do inimigo, qualquer que seja o seu número, e
obriga-os a manterem-se firmes no seu posto, a vencer ou morrer”. [3]
Durante a república romana a limitação do poder político foi alcançada
com a instituição de um complexo sistema de controles recíprocos entre as
diferentes instituições políticas. Esse mecanismo de freios e contrapesos foi certamente um dos responsáveis pela
grandeza de Roma, que teve o mérito de reunir em um sistema político as formas
de governo teorizadas por Aristóteles: o poder dos cônsules corresponderia à
monarquia, o poder do Senado à aristocracia e o poder do povo à democracia. Um
projeto de lei, por exemplo, deveria passar pelas três instâncias.
3. Direitos humanos na Idade Média
A experiência grega e romana de limitação do poder político foi
destruída respectivamente por Alexandre Magno, no séc. IV a.C., e por Augusto,
no séc. I d.C.
Após a queda de Roma teve início a Idade Média, caracterizada pelo
surgimento de uma nova civilização resultante do amálgama de instituições
clássicas, valores cristãos e costumes germânicos. Na Baixa Idade Média, a
partir do séc. XI, houve uma retomada da ideia de igualdade de direitos a todos
os indivíduos, independente de sua classe social (povo, clero e nobreza).
Também nesse período iniciou-se um processo de concentração de poder em
torno do monarca, em contraste à profunda descentralização do poder político
que caracterizou todo período medieval. Nesse contexto surgiram as primeiras
manifestações no sentido de limitar o poder do monarca: as Declarações das
Cortes de Leão, de 1188, e a Magna Carta,
na Inglaterra, em 1215.
O valor da liberdade se destacava, assim, nessa fase embrionária dos
direitos humanos. Não a liberdade irrestrita, em benefício de todos, mas
sobretudo em prol dos estamentos mas altos da sociedade, o clero e a nobreza.
4. Século XVII
O séc. XVII foi uma época de “crise de consciência europeia” e quando
teve início a Revolução Científica. O Absolutismo, teorizado por Maquiavel e
Hobbes, se disseminara por toda a Europa, a exemplo da França de Luís XIV e dos
impérios coloniais ibéricos ultracentralizadores. Era preciso limitá-lo.
Era um contexto de busca liberdades políticas e individuais e de
tentativas de limitação do poder absoluto dos monarcas.
Na Inglaterra pós-Revolução Gloriosa, foi firmado o Bill of Rights, documento que limitava
os poderes do rei e que beneficiavam diretamente o clero e a nobreza e,
indiretamente, também a burguesia rica. Esse novo estatuto das liberdade civis
e políticas permitiu que a Inglaterra liderasse a Revolução Industrial nos
séculos seguintes.
5. A Independência Americana
Os direitos humanos nascem com a primeira declaração de direitos da
história, que foi a Declaração do Bom Povo da Virgínia, de 16 de junho de 1776.
Esta dispõe em seu art. I: “Todos os seres humanos são, por sua natureza,
igualmente livres e independentes, e possuem certos direitos inatos, dos quais,
ao entrarem no estado de sociedade, não podem, por nenhum tipo de pacto, privar
ou despojar sua posteridade; nomeadamente, a fruição da vida e da liberdade,
com os meios de adquirir e possuir a propriedade dos bens, bem como de procurar
e obter a felicidade e a segurança.”
Duas semanas depois viria a Declaração de Independência dos Estados
Unidos da América, que repetiu o princípio da busca pela felicidade.
6. A Revolução Francesa
Apesar de não ter sido a primeira declaração de direitos, a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, fruto da Revolução Francesa, é a
declaração mais famosa e a que mais gerou influência, ao apaixonar mentes ao
redor do mundo. Dispõe em seu art. 1º: “Os homens nascem e permanecem livres e
iguais em direitos”. Veja-se que de início já se celebram os princípios da
liberdade e da igualdade, faltando tão somente a fraternidade.
A proclamação de que todos os seres humanos são essencialmente iguais,
em dignidade e em direitos, foi uma mudança radical nos fundamentos da
legitimidade política.
A nova democracia, nascida simultaneamente nos EUA e na França, difere
radicalmente da antiga democracia grega. A democracia moderna foi a fórmula
encontrada pela burguesia para extinguir os privilégios dos principais
estamentos do antigo regime (o clero e a nobreza) e, por meio da igualdade
declarada, ascender ao poder. Em seu nascimento, portanto, a democracia moderna
não é uma salvaguarda aos direitos das classes mais pobres, mas sim a escada de
ascensão política da classe mais rica, a burguesia.
Se por um lado a Revolução Americana foi de certo modo conservadora, na
medida em que buscava uma restauração de antigos e tradicionais direitos de
cidadania em face dos abusos do poder monárquico, por outro lado a Revolução
Francesa buscava uma mudança radical nas estruturas (políticas, sociais,
econômicas) de toda a sociedade.
7. Séc. XIX
A concretização dos direitos humanos foi obra do constitucionalismo do
final do séc. XVIII e início do séc. XIX, que organizou a esfera pública com
base na liberdade e na igualdade entre os cidadãos. Segundo Bobbio, nesta etapa
os direitos do homem ganham em concretude mas perdem em universalidade. A
partir de então os direitos são protegidos, mas valem somente no âmbito do
estado que os reconhece.
É nesse século que tem início o processo de constitucionalização e
positivação dos direitos humanos, que ingressavam nos ordenamentos jurídicos
nacionais na forma de direitos fundamentais. Com a constitucionalização, as
antigas monarquias passavam a restringir e regular o poder do soberano até então
absoluto.
8. A internacionalização dos direitos humanos a
partir de 1945
O regime internacional dos direitos humanos nasceu sob o impulso das
atrocidades perpetradas durante a II Guerra Mundial. A criação da ONU favoreceu
extraordinariamente a edificação de um sistema internacional de proteção. (v.
Preâmbulo, art. 1.3 e art. 55 c da Carta da ONU.)
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada e adotada pela
Assembleia Geral da ONU em 10 de dezembro de 1948, inaugurou a fase de
universalização e positivação dos direitos humanos. Pela primeira vez foi
possível o consenso internacional em torno de certos valores.
Em 1948 foi aprovada a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem, no âmbito das Américas.
Em 1950 foi adotada a Convenção de Salvaguarda dos Direitos dos Homem e
das Liberdade Fundamentais , no âmbito europeu.
Em 1969, foi firmada a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o
Pacto de San José da Costa Rica, no âmbito da OEA.
Em 1981 foi a vez da Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos.
9. Alguns documentos históricos de direitos humanos
Os documentos
brevemente analisados a seguir são anteriores à II Guerra Mundial, portanto
anteriores à Declaração de 1948.
9.1. Magna Carta (1215)
A Magna Carta limitou o poder dos monarcas da Inglaterra, especialmente
do Rei João Sem Terra, que o assinou, impedindo assim o exercício do poder
absoluto. Resultou de desentendimentos entre o rei, o Papa e os barões ingleses
acerca das prerrogativas do soberano.
Seu nome original: Magna Carta
Libertatum seu Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione
libertatum ecclesiae et regni angliae (“Grande Carta das liberdades, ou
Concórdia entre o rei João e os Barões para a outorga das liberdades da Igreja
e do rei inglês”, em latim).
Segundo os termos da Magna Carta, o rei deveria renunciar a certos
direitos e respeitar determinados procedimentos legais, bem como reconhecer que
a vontade do rei estaria sujeita à lei.
Foi revisada diversas vezes, de modo a se estenderem os direitos ali
garantidos a um número maior de pessoas e preparando o terreno para o
surgimento da monarquia constitucional britânica.
Por meio dos dispositivos criados pela Magna Carta foi que os membros
do Parlamento (sucessor do Grande Conselho) deram origem à monarquia
constitucional que sagra o desenvolvimento da Revolução Inglesa, acontecimento
histórico que assinala a crise do Antigo Regime Europeu.
A Magna Carta é considerada o primeiro capítulo de um longo processo
histórico que levaria ao surgimento do constitucionalismo. Alguns dispositivos
da Magna Carta:
Art. 39: “Nenhum homem livre será preso, aprisionado
ou privado de uma propriedade, ou tornado fora-da-lei, ou exilado, ou de
maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra
ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra.”
Art. 40: “A ninguém venderemos, a ninguém
recusaremos ou atrasaremos, direito ou justiça.”
9.2. Bill of Rights (1689)
O Bill of Rights (“Declaração
de Direitos”, em inglês), de 1689, é um documento elaborado na Inglaterra pelo
Parlamento que determinou, entre outras coisas, a liberdade, a vida e a
propriedade privada, limitando drasticamente o poder do rei e assegurando o
poder à burguesia na Inglaterra.
Contexto histórico: Revolução Gloriosa na Inglaterra (1688). O país
tinha passado por experiências absolutistas com as dinastias dos Tudor e dos
Stuart, assim como com a ditadura de Cromwell. Com a restauração monárquica e o
retorno dos Stuart ao poder, os reis voltavam a buscar a centralização.
Guilherme de Orange, nobre holandês, depôs o rei Jaime II, seu sogro, com o
apoio do Parlamento, tornando-se rei da Inglaterra como Guilherme III. O novo
rei assinou o Bill of Rights em 1689, documento que restringiu o poder real e
instituiu o governo parlamentar inglês. A partir desse momento o monarca inglês
praticamente não detém mais poderes políticos, passando a deter funções
eminentemente cerimoniais.
O predomínio da burguesia no parlamento criou as condições necessárias
ao avanço da industrialização e do capitalismo, no decorrer dos sécs. XVIII e
XIX. Em suma, a Revolução Gloriosa e o Bill of Rights foram de fundamental
importância para a Revolução Industrial, que começaria na Inglaterra no séc.
XVIII e se disseminaria pelo restante da Europa apenas em meados do séc. XIX.
Alguns dispositivos do Bill of Rights:
Art. 1: “é ilegal a faculdade que se atribui à
autoridade real para suspender as leis ou seu cumprimento”.
Art. 2: “é ilegal a faculdade que se atribui à
autoridade real para dispensar as leis ou o seu cumprimento, como anteriormente
se tem verificado, por meio de uma usurpação notória”.
Art. 5: “os súditos têm direitos de apresentar
petições ao Rei, sendo ilegais as prisões vexações de qualquer espécie que
sofram por esta causa”.
Art. 8: “devem ser livres as eleições dos membros do
Parlamento”.
Art. 9: “os discursos pronunciados nos debates do
Parlamento não devem ser examinados senão por ele mesmo, e não em outro
Tribunal ou sítio algum”
Art. 16: “A esta petição de seus direitos fomos
estimulados, particularmente, pela declaração de S. A. o Príncipe de Orange
(depois Guilherme III), que levará a termo a liberdade do país, que se acha tão
adiantada, e esperamos que não permitirá sejam desconhecidos os direitos que
acabamos de recordar, nem que se reproduzam os atentados contra a sua religião,
direitos e liberdades.”
9.3. Carta de Direitos dos Estados Unidos (1789)
Carta de Direito dos Estados Unidos ou Declaração dos Direitos dos
Cidadãos dos Estados Unidos. Em inglês: United
States Bill of Rights. Não confundir com o Bill of Rights da Inglaterra
(1689).
Proposta por James Madison para o Primeiro Congresso dos Estados Unidos,
em 1789. Entrou em vigor em 15 de dezembro de 1791, após ratificada por três
quartos dos estados.
A Carta de Direitos dos EUA proíbe o Congresso de elaborar leis que restrinjam
o direito ao credo e também garante o “direito do povo de manter e portar armas”.
Também proíbe o governo federal de privar qualquer pessoa da vida, liberdade ou
propriedade, sem o devido processo legal. Também institui o princípio do devido
processo legal.
Afirma que “a enumeração na Constituição, de certos direitos, não deve
ser interpretada como negando ou coibindo outros direitos do povo”.
9.4. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
(1789)
Proclamada pela Assembleia Nacional Constituinte da França
revolucionária. Aprovada em 26 de agosto e votada em definitivo em 2 de outubro
de 1789.
Inspirada na Revolução Americana (1776) e nas idéias filosóficas do
Iluminismo, sobretudo em Rousseau e Montesquieu.
Constitui-se de dezessete artigos e um preâmbulo que sintetizam os
ideais libertários e liberais da primeira fase da Revolução Francesa.
Com a Declaração de 1789, pela primeira na História vez foram
proclamados as liberdades e os direitos fundamentais do Homem (ou do homem
moderno, o homem segundo a burguesia) de forma ecumênica, visando abarcar toda
a humanidade.
Foi reformulada em 1793.
Serviu de inspiração para as constituições francesas de 1848 (Segunda
República Francesa) e para a atual. Também foi a base da Declaração Universal
dos Direitos Humanos promulgada pela ONU (1945). Alguns dispositivos:
Art.1º: “Os homens nascem e são livres e iguais em
direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum.”
Art. 2º: “A finalidade de toda associação política é
a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos
são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.”
Art. 3º: “O princípio de toda a soberania reside,
essencialmente, na nação. Nenhuma operação, nenhum indivíduo pode exercer
autoridade que dela não emane expressamente.”
Art. 4º: “A liberdade consiste em poder fazer tudo
que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada
homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da
sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser
determinados pela lei.
Referências bibliográficas
ACCIOLY, Hildebrando et al. Manual de Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2009.
AMARAL JR., Alberto do. Introdução
ao Direito Internacional Público. São Paulo: Atlas, 2008.
COMPARATO, Fábio Konder. A
afirmação histórica dos direitos humanos.
São Paulo: Saraiva, 2003.
GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direito penal: comentários à Convenção
Americana sobre Direitos Humanos: Pacto de San José da Costa Rica. São Paulo:
RT, 2008.
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Org.). Coletânea de direito internacional, Constituição Federal. São
Paulo: RT, 2008.
REZEK, Francisco. Direito
Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2008.
[1]
Professor, escritor e advogado em Foz do Iguaçu. Mestre em Direito
Internacional pela USP e doutorando em Teoria Literária, na área de Estudos da
Tradução, pela UFPR.
[2] Apud COMPARATO, p. 39.
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